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Sobre a Lógica

“Deste logos sendo sempre, os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir quer tão logo tenham ouvido; pois, tornando-se todas (as coisas) segundo esse logos, a inexperientes se assemelham embora experimentando-se em palavras e ações tais quais eu discorro segundo (a) natureza distinguindo cada (coisa) e explicando como se comporta. Aos outros homens escapa quanto fazem despertos, tal como esquecem quanto fazem dormindo.”

Não, você não leu errado. Não, o texto também não está errado e sim, estão faltando vírgulas. Porém, esta era a forma de escrita de um dos maiores filósofos que a humanidade já conheceu. Heráclito (540-470 a.C.), da cidade de Éfeso, colônia grega na Ásia Menor, era conhecido por sua escrita misteriosa e enigmática, tendo inclusive sido criticado posteriormente por Aristóteles. Mas não falaremos hoje sobre a gramática dos textos deste filósofo, mas sim de sua maior percepção, aquela que impactaria toda a civilização vindoura em meios que são impossíveis de compreender.

A citação acima se inicia com palavras deveras peculiares: “deste logos”. Ora, você já deve ter ouvido esta palavra em algum lugar antes. Não a palavra “deste”, mas sim “logos”. Mesmo que você não a tenha ouvido nesta sua forma primitiva, você já deve ter ouvido a sua “forma aportuguesada”. A palavra “lógica” é proveniente da palavra grega logos, que foi traduzida ao longo da história por vários filósofos com diferentes significados.

Logos, como boa parte das palavras gregas, não possui tradução direta para o Português, ou seja, não há uma palavra em nosso idioma que signifique exatamente o que a original quer dizer. Isto é típico de palavras gregas, pois aquela civilização se preocupou de tal maneira com seu idioma que chegou a desenvolver palavras que tentassem explicar a realidade por elas mesmas (vide o diálogo platônico Crátilo e as Periermeneias de Aristóteles).

Entretanto, apesar de toda esta beleza que o idioma grego nos inspira, e fizemos esta introdução justamente para oferecer este contraste, não nos podemos nos demorar na história grega. Passemos adiante.

O que era o logos? Heráclito o define como sendo a razão universal que regula toda a ordem da phýsis. Você pode estar se perguntando, caro leitor, se é pedantismo de nossa parte escrever palavras em grego para dar ares superiores ao texto, mas peço sua atenção para o que eu disse nos parágrafos anteriores: certas palavras gregas não possuem tradução direta para o nosso idioma e deve ser utilizadas em sua forma original para que contemplem todo o sentido pretendido aqui.

Retomando: phýsis é uma palavra que traduzimos como “natureza”. Mas não é esta natureza como a compreendemos hoje. O grego compreendia “natureza” justamente como aquilo que é natural, ou seja, como aquilo que faz parte da multiplicidade do universo. Assim, Heráclito percebeu que o universo possui uma ordem e que esta é regulada por algo que ele chamou de logos.

Trocando em miúdos (“só agora?”), logos é aquilo que dá lógica a todo o movimento universal. Tudo está em movimento e Heráclito percebeu isto. Ele percebeu também que todo este movimento aparentemente caótico possui determinada razão de ser, caso você o examine de maneira mais minuciosa. Ora, se os astros celestes possuem um movimento pré-determinado e que os homens podem aferir e compreender, como poderiam as coisas deste nosso mundo escapar disto? Elas não podem.

Heráclito percebeu que existe uma lógica intrínseca ao todo e à qual tudo o que faz parte deste todo está sujeito. Inclusive o discurso. Ora, mas percorremos todos estes parágrafos para culminar no discurso? O que tem a ver o discurso com o que estávamos falando? Tudo.

Este caminho fez-se necessário para que compreendamos que, se a realidade é dotada de lógica, o discurso também deve possuí-la. Heráclito dizia que o dever daqueles que filosofam é dizer a realidade como ela é. Ele utiliza a expressão “homologar”, que significa “assemelhar-se ao logos”, ou seja, devemos assemelhar-nos à lógica que regula o universo para que o compreendamos e digamos coisas certas sobre ele. Este era o caminho a ser percorrido para que cheguemos a contemplar o que foi dito em nosso artigo anterior.

Lá dissemos que Sócrates utilizava-se de uma arma muito poderosa para filosofar e dialogar com seus concidadãos. Esta arma era esta lógica da qual falamos tanto. A lógica permitia a Sócrates refinar seu pensamento, ou seja, permitia que ele avançasse cada vez mais em direção a uma resposta correta sobre a realidade em seus diálogos. O abandono das próprias opiniões, paixões, desejos e idiossincrasias é o primeiro passo para que compreendamos que o mundo percebido por nós não corresponde diretamente ao mundo real e que nossa percepção não pode servir como base para nenhum conhecimento seguro sobre este mundo.

Assim, ao advogar em favor do relativismo por si, o sujeito do discurso deixa de ser filósofo e passa a habitar o limbo da ignorância da realidade. Ora, se todos os pontos de vista são válidos em si mesmos, não há realidade a ser conhecida, pois os pontos de vista sobre a realidade superam-na.

O filósofo Olavo de Carvalho define o filósofo como aquele que admite que exista algo a ser conhecido. Nenhuma novidade até aqui, mas deixemo-nos pensar sobre esta afirmação. O filósofo é, por definição atribuída a Pitágoras de Samos (580/78-497/6 a.C.), amigo-amante da sabedoria. Una estas duas proposições e você terá a sua resposta. Se o filósofo ama a sabedoria é porque há uma sabedoria a ser amada, ou seja, algo a ser conhecido e amado. Logo, se há algo certo, mesmo que indeterminado, é fato que nem todas as opiniões estão corretas e que devemos investigar a realidade mais profundamente para que alcancemos este algo.

Mas então, que é esta tal lógica de que tanto falamos? Isto ficou definido também nos parágrafos anteriores: é assemelhar-se à realidade através de raciocínios cada vez mais criteriosos e minuciosos, nunca contente com o que possuímos e rumando sempre para algo mais certo e verdadeiro. Alguns podem argumentar que nunca alcançaremos este algo, mas eu os desafio a provar este ponto de vista sem entrar num argumento circular. A lógica serve justamente para eliminar estes pontos de vista, já que ela não permite que argumentemos em círculo, mas sempre de maneira ascendente, ou seja, sempre visando algo superior.

A intenção deste artigo não é lecionar sobre formas lógicas nem nada parecido, mas apenas chamar a atenção para as armas das quais dispõem todos os seres humanos para que conheçam a realidade da forma como ela é e não da forma como lhes aprouver. A realidade está diante de nossos olhos e sua estrutura está exposta ao longo da história grega. Tudo o que devemos fazer é preencher esta estrutura (forma) com toda a matéria que consigamos, até que o véu seja retirado de nossos olhos (alétheia) e sejamos arrebatados da existência para a permanência.

Aurélio Sampaio Carrilho de Castro Póvoa

24 anos, casado. Natural de Goianésia, atualmente residindo em Goiânia. Vencedor do 1° "Soletrando", no Caldeirão do Huck. Professor de Filosofia e Inglês, discípulo dos gregos e medievais, amante da linguagem e eternamente em busca do Bem Supremo.

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