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Leges Barbarorum

O critério de definição de validade de uma lei é uma das pautas mais discutidas ao longo da história. Qual é a fundamentação válida de uma conduta para que esta se torne uma lei aplicável a todos aqueles sob tutela de seu produtor? E mais ainda: qual a validade do contrato firmado entre indivíduo e Estado para que este promulgue leis que muitas vezes ferem a parte mais fraca? Estes questionamentos não são absurdos e é necessária uma investigação assaz meticulosa para que se compreenda até que ponto a legislação vigente pode interferir na vida individual e social. É necessário compreender sob qual molde está pautada a legislação e quem produziu este molde, a fim de compreender a origem dos problemas enfrentados pela sociedade contemporânea.

Dentre as civilizações que tomamos como fonte e referência de legislação e moral, com certeza os romanos possuem papel mais do que destacado. O Império Romano produziu uma quantidade quase incomensurável de fontes legislativas, dando origem a toda uma organização jurídica que manteve sua estabilidade durante séculos. O direito fundamentado, estruturado e expresso foi uma das armas mais potentes que a civilização romana produziu para se defender de ameaças internas e externas.

Em notável contraste, algumas civilizações sem todo este aparato jurídico, tão sofisticado para a época, conseguiram perdurar e inclusive subverter este grandioso arcabouço que solidificava o Império Romano. Não nos deteremos no mérito da subversão, mas apenas no seu modus operandi. As civilizações bárbaras, como eram conhecidas desde os gregos (“bárbaro” era todo aquele que não possuía a alta cultura grega), detinham um direito praticamente pessoal, no sentido de que cada pessoa carregava seu direito consigo, de acordo com o grupo ou a tribo à qual pertencia.

Numa crescente expansão, eventualmente ocorreu um choque entre estas civilizações, quando as tribos germânicas principiaram a invasão das cidades romanas, demonstrando grande resiliência e capacidade de assimilação do ambiente à sua volta. As tribos germânicas trouxeram sua cultura para dentro da civilização romana, subvertendo-a por dentro e por fora ao mesmo tempo.

De maneira metafórica e em alusão aos acontecimentos políticos dos dias atuais, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos se utiliza deste exemplo e define isto como uma invasão de faceta dupla: uma invasão vertical, ou seja, uma invasão de cima para baixo, uma subversão cultural, uma deglutição da cultura vigente e regurgitação de uma nova cultura totalmente desvirtuada e contradita à anterior; diferente, mas não paradoxal, da invasão horizontal: remoção física, guerra, disputa territorial, etc.

Ora, qual é a nossa legislação? É a lei bárbara ou a lei romana? O título deste artigo nos esclarece: é a lei bárbara sob moldes romanos. Que o leitor não nos tome por pueril, já que aqui compreendemos a expressão utilizada no título apenas em seu significado estrito, não em seu sentido amplo e em suas derivações. As leges barbarorum eram justamente isto: leis bárbaras agora expressas aos moldes romanos. Percebamos a semelhança com nossa civilização. Diariamente, o brasileiro reclama das leis de seu país. Entretanto, ele não se permite fazer a pergunta que os americanos já se fazem há muito tempo: “quem morreu e te nomeou rei?” Não é preciso dizer mais do que isto: quem autorizou nossa legislação? Quem permitiu que nossa estrutura tripartida dos poderes tomasse tais proporções?

Não há resposta mais óbvia: fomos nós. As eleições periódicas nos concedem este poder. Porém, são as nossas leis as mais favoráveis ou são apenas aquelas que nos cabem? Não estamos aqui para culpar entes abstratos por nenhum mal que acometa nossa sociedade, mas apenas para investigar se este não é causado por nós mesmos. Acompanhe-nos o caro leitor.

Um dos maiores clichês da filosofia é a conhecida máxima de Aristóteles: “o homem é um animal político”. É o óbvio ululante, podemos argumentar, mas o verdadeiro sentido desta frase jaz subentendido no conceito de “política” utilizado pelo Estagirita. O que queria o velho Ari ao dizer que o homem é um animal político? Obviamente, afirmar que a civilização precede o homem. Como é possível, pode pensar o leitor, que um dos maiores pensadores da história cometesse um erro tão grosseiro? Pergunto: onde está o erro? A lógica é inexoravelmente válida: se não há civilização ou sociedade, não há vida política. Se um homem vivesse sozinho, ele seria materialmente absoluto, já que não haveria um extremo oposto que o contradissesse, mesmo que ele estivesse errado. Ademais, este “se” não nos interessa, já que esta condicional não nos acometeu até o presente momento.

Já chegamos a uma afirmação parecida em nosso artigo anterior, onde afirmamos que a ordem precede logicamente a liberdade. O homem nasce sujeito à ordem, ainda que nasça no meio do mato, sob nenhuma jurisdição imediata. Desta forma, percebemos que a civilização na qual nos encontramos, e que já estava antes de nós e estará depois que nos formos, possui implicações e complicações muito mais ancestrais do que julgamos. Destas implicações, uma é justamente aquela que motivou nossa investigação, alguns parágrafos acima: qual lei nos é mais favorável e o porquê de não a utilizarmos. A lei brasileira nos contempla? Não? Então porque não a modificamos? O que aconteceria se aplicássemos a legislação americana no Brasil a partir de hoje? O que mudaria em nossa sociedade? Estas mudanças seriam imediatas, benéficas, contundentes, duradouras? Se sim, temos um problema.

Estaremos sob o jugo do abstrato para conduzir nossas vidas, assim como estamos diariamente e não nos damos conta, o que mudaria seria somente a canga. O nobre leitor pode argumentar que o fardo sobre nós seria mais leve sob esta ou aquela legislação, mas podemos afirmar categoricamente e com evidências empíricas que nós mesmos trataríamos de colocar mais peso sobre nós mesmos com o passar do tempo.

Esta é a natureza humana, conforme foi definida pelo eminente filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Segundo Hegel, nós nascemos sob esta ordem jurídica e rumamos para ela, em direção ao Absoluto. É inevitável, pois o Estado é uma das expressões da realidade à qual devemos nos sujeitar para que alcancemos a plenitude humana. Hegel não se utiliza de juízos de valor para fundamentar o benefício ou malefício disto, e nem nós o faremos. A nossa investigação aqui nos diz apenas que a civilização não deveria ter que depender de legislação x ou y para conduzir sua vida, mas também reconhece o papel imprescindível do Estado na organização de nossa realidade para que não tenhamos que reinventar a roda a cada novo conflito que se nos apresentar.

A ausência de uma destas partes na dialética humana teria consequências provavelmente catastróficas, nos conduzindo a um limbo de indecisão e necessidade de constante reinvenção da sociedade, numa tentativa incessante de conservação. Aqui concluímos que a questão a ser feita não é realmente “quem morreu e te nomeou rei?”, mas sim “o que você fará agora que é rei?”. Cada um de nós possui um poder diferente de alteração de nossa realidade, mas a verdadeira sabedoria consiste em saber quais alterações são necessárias, colocando nossas paixões de lado e procurando sempre uma aproximação maior da Verdade. Aplicar esta ou aquela ordem artificial sobre nossa sociedade não resultará em nada se esta não estiver em pleno acordo com a ordem mesma da realidade, pautada na Verdade e prezando pela Liberdade.

Aurélio Sampaio Carrilho de Castro Póvoa

24 anos, casado. Natural de Goianésia, atualmente residindo em Goiânia. Vencedor do 1° "Soletrando", no Caldeirão do Huck. Professor de Filosofia e Inglês, discípulo dos gregos e medievais, amante da linguagem e eternamente em busca do Bem Supremo.

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