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EDUCANDO PARA A CONTRADIÇÃO

 

Pensar a educação é uma das minhas tarefas diárias, sou professor de língua portuguesa e trabalho com a Educação Básica, atuando principalmente no Ensino Fundamental. De minhas salas de aula saem alunos que precisam usar a língua em sociedade, que precisa ser ensinada na escola porque a leitura e a escrita são artificiais, diferentes da fala que é aprendida nas interações sociais mais básicas, aquela que acontece entre as crianças e seus progenitores ou responsáveis. É uma tarefa árdua, porque há objetivos em se ensinar a língua especificamente e uma das tarefas mais doloridas do ensinar é avaliar se houve aprendizagem.

Aprender língua é uma complicação muito grande, não há facilidades na escrita. Uma vez que a gente se dá a essa tarefa, as coisas podem se complicar de maneira inacreditável. Nós, professores de língua portuguesa, encontramos mil barreiras ao letramento que vão desde a organização básica da educação que não ajuda, não se moderniza e não acompanha o desenvolvimento do mundo ao redor até a inadequação de filosofias, métodos, técnicas, falta de recursos e infraestrutura, por exemplo.

Mas, apesar disso, a escola continua. E funciona. Há duas coisas que se espera da escola. Em primeiro lugar, seu objetivo declarado, geralmente ligado às melhores e mais sublimes ideias que sustentam a República Federativa do Brasil. A educação deve formar o cidadão para a vida, para agir em sociedade usando os recursos que cabem a si por meio do princípio da igualdade, liberdade e fraternidade. Mas de fato, não acontece sempre assim, já que a desigualdade é inerente desse e de qualquer sistema social, que insiste em ter utopias comoideário, mas ao mesmo tempo se contradiz ao manter práticas de exclusão antigas como a humanidade. Essa contradição é inerente a tudo que é humano, a tudo que é social. As coisas são e não são ao mesmo tempo. É de certa forma, natural, que as pessoas admitam como desejável e justo que tenhamos uma sociedade com valores muito diferentes de suas práticas.

A educação não fica atrás nesse processo, seus valores são sublimes, mas a sua prática excludente. A educação pública, por exemplo, é o maior exemplo de que o governo tem pouco interesse na formação de seus cidadãos, mesmo que isso seja o contrário do que está na Constituição Federal e nas leis que regem a educação. Todos são iguais, mas todos são diferentes e por isso uns são mais privilegiados que outros. Mas para funcionar nesse nível de complexidade, contradição e contrariedade de ideais que são postos como verdade, a sociedade precisa que a contradição seja sistêmica, que ataque todo e qualquer valor social de maneira plural e microscópica.

No meio disso é que faz sentido as leis quererem uma educação que vai funcionar de modo contrário ao das aspirações de quem mais precisa delas. As leis são ideais, mas a aplicação delas precisa distorcer o escrito para caber na realidade, a ponto de mudar completamente o que diz, ao mesmo tempo em que as práticas precisam atender ao mesmo tempo a um deus e a um diabo, a dois polos de sentidos opostos.

A educação é necessária para a formação da sociedade, depende dela boa parte da pacificação da população, da formação da massa trabalhadora, especializada ou não, e também depende dela a circulação dos bens culturais e a aplicabilidade de formas de governo mais suaves e eficazes. A educação é, antes de tudo, uma ferramenta de aplicação dos poderes que mantêm a sociedade coesa.

Por outro lado, a educação não pode formar demais, esclarecer demais, dar acesso demais, fazer circular as coisas demais. Ela precisa garantir os itinerários mais comuns e desejáveis para a ação de poderes em fluxo. Não se pode educar ricos e pobres no mesmo lugar, sob a pena de se abalar estruturas que regem o modo de produção que dá a coesão desejada pelas classes dominantes, nesse ponto, fica mais fácil quando cada qual é educado para quê. E isso é incompatível, pelo menos filosoficamente, pelo menos de modo direto, com as leis mais gerais do país.

Aliás, a lei em si traz uma semente de contradição ao determinar como princípio de liberdade algo que produz, fomenta e se baseia na supressão da liberdade de outras pessoas, como é o caso da propriedade privada, em muitas das situações em que ela precisa, de fato, existir.

Essa é base na qual se sustenta a educação pública: leis maravilhosas que esbarram nos limites impostos pela propriedade privada, pela sua manutenção e pelas relações sociais que ela fomenta para que se possa, de fato, continuar a existir apesar das mudanças na dinâmica da sustentação da vida no planeta. A educação é essencial.

Essencial para se manter ou mudar isso.

Essencial para que os indivíduos possam viver com dignidade no meio de mudanças ou de estagnação, independente do modo como a política, a economia e as leis sejam botadas em prática ou postas à prova.

Por isso que dar aulas é importante, ser professor é importante e ensinar língua portuguesa é importante mesmo que se ensine o óbvio, o que já está automatizado, mesmo que seja algo que o aluno já sabe falar. Mas falar não é ler e não é escrever e sem ler e escrever não há exatamente acesso a tudo que circula pela cultura.

Por isso que precisamos ensinar os alunos a entender um texto, e por isso que entender algo escrito é muito mais importante do que exatamente decodificar sons ou usar regras sofisticadas.

A língua é a chave-mestra da cultura, ensiná-la bem é um dos mais efetivos caminhos para o poder. Não me espanta que, ao ensinar língua portuguesa para adolescentes eu encontre conteúdos defasados, falta de recursos e intenções escusas nas propostas de ensino.

Hoje, nós os professores de língua portuguesa, ensinamos bem quando uma avaliação internacional diz que ensinamos bem, e a cada dia que passa, o ensino existe em função dessa avaliação. Há que se focar no mínimo que é cobrado ali, naquele instante, e isso produz efeitos benéficos, mas produz efeitos maléficos, tais como se reduzir o que se ensina na escola pública a esse mínimo, enquanto o ensino privado ensina mais para quem é destinado a ler mais, escrever melhor ou ter mais poder.

Nesse ponto, ensinar “português” é ensinar a pobre ser pobre, falar como pobre, ler subalternamente, entender o mínimo necessário, questionar pouco e ousar menos ainda. Mas podemos resistir, e resistimos a cada vez que nossos alunos passam além dessa linha e conseguem superar suas próprias limitações, o que nem sempre é fácil ou pelo menos possível de se fazer.

Infelizmente.

 

Alex Mendes

Alex Mendes é professor, graduado em Letras, Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Reside em Goianésia, ensina língua portuguesa e inglesa na rede estadual de Goiás

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