GORDOFOBIA
Desconheço qualquer obra científica que possa referendar o uso do termo gordofobia, o que eu posso afirmar é que seja um neologismo para expressar a exclusão social experimentada por pessoas que estejam gordas, independente da presença ou não de doenças ou da possível associação dessas doenças com o peso. Georges Vigarello, historiador francês, escreveu a obra As metamorfoses do gordo e mostra que, desde a Idade Média, as compreensões sobre a obesidade variam muito. O corpo gordo era primeiramente o corpo de glutões, de pessoas que desperdiçavam alimentos ou comiam em excesso desprestigiando outros famintos. Nessa época, as primeiras teorias sobre o fluxo de humores circulando pelo corpo apontavam a gordura como uma forma de impedimento da circulação correta desses líquidos, trazendo má saúde. No século XIX, apesar da sensível diferença com o parâmetro atual de magreza, o peso em excesso era encarado como um problema estético de homens e mulheres burguesas, que queriam ostentar corpos cada vez mais magros. Era o embrião da salutabilidade magra. O século XX trouxe a ideia de que o corpo gordo seja doente, a associação entre gordura e patologia é médico-estética, e isso está associado à economia simbólica do corpo, seus usos e prazeres, ou seja, à disponibilização e eficiência dos usos dos corpos para o trabalho, à sua produtividade, ao custo de manutenção de sua existência, ao impacto em sistemas de saúde, públicos ou não. Chegamos ao século atual com a ideia consolidada da presença do excesso de peso, gordura corporal como uma espécie de deficiência física, que leva à inabilidade social.
O corpo deve funcionar numa arquitetura de si e se encaixar perfeitamente na organização arquitetônica do espaço ao seu redor, de forma que haja eficiência. Os preceitos estéticos que negam isso ao corpo gordo não são exatamente ligados à saúde, mas ao contrário, a saúde se apoia na coincidência de interdições ao corpo gordo vindo dos saberes da moda e da aparência. Nas interdições ao corpo gordo, os discursos da moda e da saúde se entrelaçam para contê-lo dentro de um dispositivo orgânico de poderes em que o corpo precisa se reduzir a um mínimo para o exercício saudável de suas funções laborativas, assim como também ele precisa se reduzir para caber dentro dos espaços arquitetônicos que o cercam, dentro da indumentária que o envolve.
O corpo gordo pode encontrar dificuldades de acesso a vestuário adequado, ao fluxo em espaços arquitetônicos específicos, a mobiliário adequado, aos planos de saúde (uma vez que a suspeição da doença pode sugerir que o indivíduo queira consumir produtos de alto custo, como cirurgias e tratamentos caros com especialistas), ao transporte coletivo. Isso gera discriminação em ambiente de trabalho, pode dificultar o acesso de pessoas obesas a determinadas vagas que elas podem ocupar sem problemas. Há dificuldade de acesso a certos cargos pelo devir da saúde do corpo gordo. Aliás, há uma crença disseminada que homens ou mulheres gordas sejam incapazes de realizar trabalhos que exijam esforço físico ou que eles tenham automaticamente doenças sérias, como males coronários, diabetes ou lesões nos membros inferiores por causa do excesso de peso. A obesidade parece também determinar infertilidade e falta de desejo saudável por pessoas obesas, sempre preteridas por causa da falta de erotização de seus corpos.
O padrão de atendimento médico à pessoa obesa é, na maioria dos casos, passar o peso à frente da principal queixa de saúde. Em muitos casos, esse tipo de conduta médica impede a comunicação de reais problemas aos profissionais de saúde, que deixam de ouvir queixas e passam a determinar necessidades primeiras relacionadas à nutrição ou ao emagrecimento. Não se nega a obesidade como causa específica de certos problemas de saúde e nem a gordura mórbida como um problema que atinge muitos obesos, mas não é raro o discurso médico silenciar o indivíduo obeso ou com sobrepeso no primeiro contato com profissional de saúde.
Pesquisas médicas não autorizam relacionar o excesso de peso a presença obrigatória de doenças, mas é a prática clínica que sustenta essa patologização de todo e qualquer excesso de peso. Na verdade, isso não é nem ao menos condição principal ou determinante, em muitos casos. A discriminação ao corpo gordo é, na verdade, um reflexo da economia simbólica do corpo em sociedade, da atribuição social de seus valores e utilidades. Isso acontece quer seja para o deleite estético, quer seja para o trabalho útil e produtivo. O problema é assumir sem reflexão que o destino do corpo gordo, do obeso é não ser desejável e ser inútil. Corpo indócil, não presta às microdisciplinas que nos tornam úteis e dóceis e que existem em sociedade e nos conduzem ao trabalho e ao uso ajustado em sociedade do corpo. Nesse sentido, a resistência a essas forças acaba por obrigar os indivíduos gordos a se organizarem em torno de uma identidade de corpo desviante e a produzir resistência: moda própria, grupos de pessoas com interesses comuns, sites de namoro online para gordos, propostas de estética artística desviante, uso do simbólico (linguagem, significados) específicos dentro de comunidades de iguais e a exaltação da diferença. Isso é importante, mas pode produzir mais diferença, minimizar os diálogos e fazer crescer a instatisfação de uma população de diferentes que só cresce. A obesidade também é fruto de práticas sociais problemáticas: hábitos alimentares, usos do corpo fora do trabalho; além disso há os problemas genéticos, o uso específico de medicamentos e a complexidade de tudo não pode ser reduzida ao entendimento de que obesidade é indolência, preguiça, sedentarismo ou distúrbio psicológico. É algo complexo, a visão sobre isso deve buscar essa complexidade e ao apoio da área de saúde deve ser feito na medida em que houver mesmo doença física ou mental; acima de tudo, a aceitação da diversidade pode evitar procedimentos invasivos sobre o corpo, como as cirurgias bariátricas, antes recomendadas apenas a indivíduos extremamente comprometidos com o peso, e hoje comercializadas como técnicas rápidas de emagrecimento.