Dividir e conquistar
Algo extremamente curioso perpassa nossa sociedade atualmente. A presença crescente de toda sorte de psicopatologias é algo que tem ganhado cada vez mais notabilidade tanto no âmbito acadêmico quanto fora dele, fazendo com que se especule ininterruptamente sobre a necessidade de uma ingestão cada vez maior de psicofarmacológicos e de auxílio terapêutico.
Sem retirar os méritos da medicina psiquiátrica e da terapia psicológica, que têm alcançado grandes progressos no sentido do tratamento destas moléstias da psique, queremos aqui analisar, à luz da filosofia, causas outras que não aquelas documentadas em livros técnicos das áreas mencionadas para, quem sabe, colaborar com ambas, ou pelo menos oferecer um esteio diferente a quem quer que esteja atormentado por estes engodos.
Desde a Grécia Antiga, antes mesmo das grandes filosofias platônicas e aristotélicas acerca da psique a da alma, alguns pensadores já esboçavam tentativas de compreender o porquê deste desgosto inevitável para com a nossa vida. Ora, a filosofia nasce justamente com a insatisfação. Não mais obtendo respostas suficientes nos mitos, os primeiros filósofos gregos se voltaram para a realidade para tentar compreender a existência.
O eminente filósofo pré-socrático Anaximandro de Mileto foi o primeiro a pensar a existência do ponto de vista do kósmos, palavra grega que significa literalmente “ordem”. Ele fundamentou a ideia de que existe uma ordem neste universo que é proveniente de algo peculiar: a separação de pares de opostos (quente-frio, úmido-seco, cima-baixo, etc.). Com efeito, a cosmologia de Anaximandro apregoava que a origem do universo teria sido principiada através do que ele chamou de ápeiron, o ilimitado.
O ilimitado seria um corpo externo a este universo, portanto não seria material, no qual os pares de opostos estariam em unidade: quente e frio seriam apenas “temperatura”, e assim por diante. Anaximandro afirma que, por seu próprio movimento, que seria como uma peneira, ou crivo, o ápeiron separou os opostos que estavam em unidade e lançou-os para fora de si. Uma vez lançados ao mundo, estes pares de opostos permitiram o surgimento e a perduração da vida, já que estariam em constante conflito por prevalência: o frio deseja prevalecer sobre o quente, causando injustiça para com os seres do universo. Assim, o quente deveria provocar-lhe deferência, para que pudesse também prevalecer, e assim este processo se repetiria ad infinitum até que o universo fosse dissolvido e retornasse ao ilimitado.
Independentemente da exatidão deste pensamento, podemos observar que seu pano de fundo é extremamente pertinente: o mundo é criado por uma separação, que ele chama de apókrisis, e esta somente é finalizada quando o universo retorna à sua unidade, através da justiça entre os pares de opostos.
Não ironicamente, a nossa palavra “crise” advém da palavra grega krisis, cujo radical é utilizado para formar o termo grego supramencionado. Neste sentido, concordamos com o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, quando ele afirma que crise é separação. Não seria possível maior precisão. Ora, se o universo está em constante separação, de acordo com Anaximandro, porque também não estaríamos nós? Também fazemos parte da realidade, não lhe somos apartados. Portanto, é mais do que razoável pensar que talvez esta separação esteja nos causando o que foi mencionado no início do texto e que pode ser resumido nesta simples palavra: crise.
Como chamamos o pico de influência de um transtorno sobre nós? Crise. É na crise que os efeitos daquele tormento se tornam mais fortes. E aquilo que provoca a crise é justamente a cisão final entre nossa unidade e a unidade da realidade. É a gota final que entorna o caldo, o rompimento do último fio de conexão que tínhamos com algo psicologicamente sólido.
O desligamento, voluntário ou involuntário, com a realidade provoca em nós algo que arrebata nossa consciência e nos retira de nosso fundamento e isto é, sem dúvida, a raiz de muitos dos transtornos que nos acometem atualmente. Quando nos negamos ou não conseguimos compreender a realidade, nossa mente não tem alternativa senão distorcer nossa percepção para aplacar a dor ou angústia que aquilo nos causa. Este é um problema muito sério. A distorção da percepção da realidade impede que tenhamos acesso às coisas mesmas, ou seja, passamos a viver no mundo da mera aparência, da res extensa, como já mencionamos em outro texto.
Infelizmente, as consequências não se encerram neste problema. Quem possui alterações na percepção da realidade pode se tornar altamente sugestionável, propenso a acreditar em diversas ideias ou propostas irreais, retroalimentando o círculo de sua própria demência e, mais do que isso, distribuindo-o a seus concidadãos. A impossibilidade ou incapacidade de analisar nossas próprias ideias, já que não seria possível conectá-las com a realidade, pode se tornar algo transmissível via discurso e que pode afetar os mais remotos recônditos da alma humana. O brilhante psiquiatra austríaco Viktor Emil Frankl chamou a isto de doenças noogênicas (do grego nôus + génesiía), ou seja, doenças do espírito, doenças que afetam as profundidades do ser e impedem que ele reconheça a realidade.
Para remediar esta condição, nos valemos da própria característica intrínseca ao ilimitado de Anaximandro: o retorno à unidade. Parece simples ao falar de maneira tão banal, mas o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho assevera que este não é um processo simples. Segundo ele, a unidade da consciência só é atingida através da filosofia, ou mais precisamente do filosofar. O filosofar leva à unidade do conhecimento na unidade da consciência, afirma. Destarte, percebemos justificada também a assertiva do já mencionado Mário Ferreira dos Santos: a crise leva o homem à crítica, ou seja, ao entrar em crise, ao nos separarmos da realidade e quiçá de nosso próprio ser, nosso primeiro impulso é o de retornar à unidade, conosco e com a realidade.
Neste sentido, o reconhecimento desta cisão e a insatisfação com aquilo que está posto e imediato são os primeiros passos para o retorno à unidade. É a nossa maneira de efetivar a justiça que é dada a nós pelo universo para que possamos combater aquilo que nos faz injustiça.
É necessário que tentemos incessantemente transpor as barreiras da crise, pois as ilusões criadas pelas tentativas de sobrevivência de nossa consciência só podem prejudicar aquilo que tentamos a todo tempo construir. Uma mudança de atitude perante a realidade pode ser suficiente para que nos distanciemos do fundo do abismo, para utilizar o exemplo de Mário Ferreira. Segundo ele, os abismos (as crises) podem ser incessantes e extremamente profundos, e por mais que pensemos que não, há pessoas que possuem abismos mais rasos que os nossos, cujos espíritos já superaram a dor da apókrisis e já ao menos se aproximaram da unidade.
A busca pela unidade deve ser o fundamento e o norte de nossa vida, para que possamos passar a vida sem enganos e ilusões, ou para que pelo menos não nos contentemos com estas. É fundamental, em tempos onde mais e mais pessoas têm seus espíritos estilhaçados por uma falsa realidade, que nos proponhamos a fazer isto por nós e por aqueles que nos cercam.