ESTOU CANSADO DE VIVER!
Calma, antes que pense que isso é uma espécie de carta suicida, leia até o final.
Estou cansado de viver num Estado agrário e reprodutor de sérias desigualdades, sempre justificadas pela “cultura local”. Estou também cansado de ser silenciado ao dizer isso, como se com isso eu corresse um sério risco de ser prejudicado. Não. Precisamos discutir o atraso intelectual do goiano médio, sua formação pessoal, sexual, sua relação com o feminino, sua adesão a pensamentos de ordem religiosa e política. Não temos que ter medo de dizer que esse pensamento é deletério, prejudicial e atrapalha viver no século XXI. Isso não é invenção, mas constatação de fato.
Estou cansado de viver num Estado em que se tenha de lidar com a diversidade, ter de conviver com a modernidade, ter de entender o mundo e o contexto que o cerca e não se consiga. Talvez porque tenhamos vivido séculos fermentando a ideia colonizada de que o mundo é o além-Paranaíba. Goiás é um mundo sem contexto, que, na mente de muitos, cheira a estrume bovino, baixeiro de cavalos suados e tudo parece estar o tempo todo perturbado pelo ruído de uma tradição que não existe. Ao se olhar um goiano qualquer na rua, não se tem como distingui-lo de um paraense, baiano ou mesmo paulista. O sotaque goiano é uma das muitas variações de um falar endêmico da região centro-sul do país.
Estou cansado de viver num Estado em que a culinária arrota o cheiro do pequi como se comesse o fruto somente por aqui. Há pequizeiros do Paraná até o Ceará e o fruto também ocorre na Bolívia. A riqueza culinária do Brasil caipira encontra no nosso Estado um ponto de convergência do melhor de várias regiões que nos circundam, mas não é uma culinária somente nossa, pois é tributária dos saberes e fazeres de uma região mais ampla. Na verdade, Goiás carece de uma identidade exatamente própria, talvez porque o Estado seja uma invenção geográfica que recorta certa parte do povo brasileiro e sua cultura, mas não exatamente algo somente seu. Podemos encontrar especificidades pontuais na cultura goiana especialmente nas suas cidades mais antigas, como Goiás e Pirenópolis, mas não exatamente indicativas de uma cultura goiana ampla e diferenciada de todas. Aliás, há a possibilidade de se pensar ao contrário, talvez o que se possa mesmo chamar de cultura goiana esteja nessas cidades, nas suas tradições e modos de vida. Fora delas, é um viver geral, imitador de um cotidiano contemporâneo em triste choque com sérias defasagens sociais.
Estou cansado de viver num Estado em que boa parte da população vive em cinturões de pobreza ao redor de cidades que esbanjam espaço, luxo e recursos para poucos. O entorno de Brasília, uma das duas metrópoles que polarizam a vida no Estado acumula índices preocupantes de violência e carência humanitária. Os municípios goianos, fora desse cinturão, polarizam-se em torno de Goiânia, a capital, seus recursos e oferta de emprego.
Estou cansado de viver no “resto” do Estado, para além dessas duas regiões metropolitanas que juntas não dão meia São Paulo (incluindo a população do próprio Distrito Federal que não é Goiás). A unidade federativa é uma colmeia de cidades de pequeno porte com algumas cidades com mais de cem mil habitantes. Nesses lugares, geralmente orientados para alguma “vocação rural” que na verdade significa a exploração do agronegócio por alguma empresa de grande porte, é comum ter uma parcela da população com muitos recursos, mas mesmo para eles a vida parece vazia de significado cultural próprio.
Estou cansado de viver num Estado em que haja uma identidade caipira moderna consumidora de superficialidades “sertanejas”. Incluem-se nelas: música, moda e supostos costumes “nossos” que parecem ser criados dentro de laboratórios de criatividade que são as casas noturnas goianienses. Mas não é exatamente assim. O “celeiro” goiano da música sertaneja é um imbróglio cultural, na verdade uma sucursal de empresas paulistas de entretenimento a meio caminho do Norte e Nordeste, um polo de exploração desse tipo de trabalho, como o realizado pela famosa marca de casas noturnas que também realiza festivais de arromba pelo país. A grande ostentação disso tudo mostra a riqueza que gira em torno desses produtos, mas eles não são exatamente oriundos de Goiás. A “dupla sertaneja” não é uma invenção goiana, a música caipira não é originária daqui e o sertanejo moderno não nasce exatamente do empreendedorismo goiano e de sua musicalidade “natural”. Ela surge do esforço principalmente em São Paulo, de se produzir música pop que fosse consumível pela grande massa populacional que resistia a assimilar a música pop americana e europeia que, geralmente, circulava em inglês. A música sertaneja pop consumível tem origens rurais e chega à cidade e às rádios num processo que durou todo o século passado, e traz em si o êxodo rural, a assimilação de elementos de outras musicalidades pelos sertanejos, como as músicas latino-americanas (tangos, boleros, guarânias, entre outros). Além disso, houve a gradual troca do romantismo clássico que celebrava o amor, a pureza, a natureza, a vida rural simples pelo erotismo das músicas de cabaré. Isso tudo culminou com a exploração mercadológica desse ramo por produtores de música pop, que introduziram as baladas, guitarras, sintetizadores, coros e engenharia de som. Cantores maduros e vestidos como mariachis, gaúchos ou de bota, chapéu de palha e sanfona em punho foram substituídos por rapazes bonitos em jeans apertados, em caras vestidos como cowboys americanos e cantores de música country. Nada disso chegou em Goiás primeiro. Nossa música tradicional não tem muita relação com o sertanejo, mas passa pela música erudita protobarroca que resistiu nos centros históricos de todo o país até mais ou menos a metade do século passado. Além disso, Goiás imitava muito a música da corte carioca, durante a colonização e império. E depois disso, o samba, a música de câmara, marchinhas, dobrados e outros gêneros ligados à tradição musical do sudeste eram comuns por aqui, mais que qualquer forma de música que estivesse sendo gestada nas regiões interioranas de São Paulo e chegariam por aqui com o trem de ferro, no século passado.
Estou cansado de viver num Estado em que se pensa que sejamos pitorescos, curiosos e divertidos “por natureza”. Na maioria das vezes, Goiás não é um lugar engraçado, nem todo goiano é um cara legal como o bem-humorado engenheiro civil que está na Califórnia fazendo intercâmbio. Vestido “a caráter”, como se estivesse na Festa de Peão de Barretos, São Paulo, ele se diverte fazendo vídeos de si mesmo ironizando nosso falar, nossos costumes e comida frente à modernidade gritante do Estado do Vale do Silício. Branco, bonito e de ótima condição financeira, visto que pode estudar e trabalhar temporariamente fora do país, ele faz o retrato estereotipado do goiano médio: religioso, exagerado, falastrão, piadista e que sempre age de boa fé. O youtuber é católico romano e adepto da prática popular não recomendada pelo Vaticano de fazer romaria a Trindade, mas financeiramente bem aproveitada pela arquidiocese local; além disso, é um inveterado comedor de pequi, pamonha e vai para o céu depois de morrer comendo quatorze de suas unidades de aproximadamente duzentos e cinquenta gramas da iguaria de milho. Foi salvo da condenação pelo pecado mortal da gula pelo Divino Pai Eterno (abaixo de Deus só ele e Nossa Senhora, como dizem alguns fiéis), pois teve fé nessa romaria. Para além de sua simplicidade como pessoa popular, seu nível superior de estudos e boa situação financeira o levaram para longe daqui. Sua boa educação formal não o impede de ter uma fala e sotaque carregados, cheio de expressões populares e mistura de maneira inusitada um inglês falado em máquina de moer carne com a variante “goiana” do português brasileiro. Há mesmo uma variante goiana, que seja só nossa? Temos peculiaridades vocabulares, modos registrados como locais de fazer certas derivações de palavras, a pronúncia retroflexa da coda /r/ quando há a tendência de seu desaparecimento em outros locais? Provavelmente sim, mas não sei exatamente se é isso que ele apresenta no seu material, já que objetiva o humor baseado no estereótipo. O seu modo carregado não me parece exatamente goiano, mas caricatura de um sotaque e vocabulário que não estão encerrados entre o Estado do Tocantins, o Rio Araguaia, o Rio Paranaíba e a Serra Geral de Goiás. E nem concentrados num ponto interno desse quadrilátero. Temos um espalhamento dessa forma de falar por uma região de dimensões continentais e Goiás é que está dentro desse local e não ao contrário. Esse moço macaqueia um modo brasileiro de falar e o rotula de goiano talvez por não souber que ele não seja apenas isso.
Estou cansado de viver num Estado em que a “vocação rural” entre outras desculpas furadas impeçam o desenvolvimento de toda e qualquer ciência, por mais que seja barata. Numa época obscura em que mudanças políticas ameaçam nosso tímido desenvolvimento científico nacional, poderemos ver o Brasil inteiro se equiparar ao desenvolvimento tecnológico e científico de Goiás. Seremos padrão de referência para um possível ministério de ciência e tecnologia de um governo emburrecedor, provavelmente nos copiarão em tudo, ensinarão a sucatear universidades usando a universidade estadual daqui como modelo. Também ensinarão a atingir médias numéricas em índices de qualidade de educação básica sem, exatamente, ensinar a ler e escrever com eficiência. Seremos sede de parques industriais que se abrirão e se fecharão ao sabor do preço da hora trabalhada, teremos demissões em massa, o Brasil se tornará a terra das usinas de açúcar e álcool, frigoríficos e abatedouros e montadoras de carros semi-importados que fiquem fazendo chantagem com o governo estadual em troca de isenções de impostos, baratas para o governador, mas caras para a saúde, educação e segurança pública. O modelo goiano de sucateamento da máquina pública, ingerência e terceirização, em estado avançadíssimo por aqui, será copiado por grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro, logo o Brasil estará todo financiado pelo crédito rural de um banco estatal na mira da privatização, com seus notáveis andando e caminhonete e de botina suja de terra vermelha, ou espirrada de fezes de vaca. A calça jeans que eu tanto amo será uniforme nacional e o famigerado caminhão rivalizará com o trator e a colheitadeira. Viva o Goiás.
Estou cansado de viver num Estado em que o meio ambiente está somente em função de quem recebe incentivos para degradá-lo. Se o Brasil tratar o meio ambiente como os goianos tratam o cerrado: com pasto, lavoura ou fogo, ou com os três ao mesmo tempo, nós seremos, em poucos anos, um lugar de terra batida e capim amarelado de norte ao sul do país. Preservar cerrado é coisa de Mato Grosso, Bahia ou Tocantins. Por aqui é vaca, boi, cana e soja, além de muito agrotóxico, fertilizante, e do abuso de recursos hídricos, conjugado a péssima gestão ambiental. Não somos um estado de terras predominantemente férteis, na verdade, sem o avanço das técnicas de manejo e tratamento de solos, a agricultura de plantation jamais teria chegado até aqui. As poucas manchas de terra agricultável que valiam muito eram longínquas, a ausência de estradas e ferrovias até os anos de 1900 não trouxeram grande variedade econômica para o local. Com a ferrovia, vieram paulistas, sulistas e outros que se estabeleceram em várias regiões do Estado e souberam domar os solos do cerrado, sua acidez e aridez; eles souberam evitar suas rochas, plantar pastos mais eficientes, por fim, tornaram-nos local de interesse econômico da agricultura, pecuária e seu particular desenvolvimento econômico. Goiás, no entanto, é local estratégico de preservação de nascentes, possui biodiversidade inestimável sobre seus solos exploráveis, riquezas minerais e aquíferas. A própria agricultura de exportação depende de um regime de chuvas que necessita da manutenção da camada vegetal para continuar a acontecer com a mesma sazonalidade. Podemos, em breve, ser todo um Brasil parecido com Goiás nesse ponto.
Estou cansado de viver num Estado em que se tenha de pedir desculpas por ser diferente, reduto de machismo e conservadorismo, ainda é um desafio, uma opressão imensa ser quem se é como se é aqui em Goiás. Lugar hostil à população LGBTQIA+, essas identidades se escondem debaixo de medo e preconceito. Goiás é um poço de tradições inúteis. Uma delas é o machismo inerente ao comportamento caipira do q ual nos orgulhamos agora em nível internacional. As tradições goianas incluem, além do chauvinismo na fala e nos modos masculinos, apagamento das mulheres e pouco espaço de protagonismo que sejam inclusivos. Em Goiás também é difícil ser negro e indígena. A cara do Estado é branca e de chapelão, não há muito espaço para os negros nessa frente, embora se reconheça a ascensão social de parte da população negra e parda nos últimos anos. E se isso aconteceu, não é por vontade dos goianos, que sempre veem o continuísmo das coisas questionáveis como o agradável, o correto. Reduto eleitoral da direita, ainda hoje em dia mostra uma marca indelével na composição de seus esquemas de poder. Numa época em que o coronelismo ficou na história da primeira república, Goiás ainda é um dos lugares do país em que o poder tem sobrenome, cor e tradição. Mesmo que poucos nomes se liguem à história do final no século dezenove e início do século vinte, há sempre espaço para que famílias ricas se alternem no poder. Onde eu nasci, aprendi um neologismo triste: a “familiocracia”, por isso a relevância de se sempre responder à pergunta-símbolo da distinção de classe goiana: “Você é filho de quem?”
Estou cansado de viver no Estado de Goiás, mas visto que haja a possível goianização do país por meio do atraso que o cenário político promete, talvez não compense me mudar daqui. Vou ficando, cansado. Goiano. Amuado, pronunciando porta, porteira, portal, portão, porca, perna, perdão… O som parece de mil portas rangentes de um lugar muito velho, muito ruim, atrasado apesar da modernidade, estranho, incomum. Goiás é o lugar das incoerências um cenário de realismo fantástico, uma idiotice histórico-cultural incomum implantada numa outrora pujante natureza cheia de belezas. É terra de um povo que, acima de tudo, resiste, mesmo que seja resistir ao que é benéfico para si mesmo.