Colunistas

SELEÇÃO NATURAL

Como a seleção natural fosse muito injusta, a equipe de leões da savana do Serengueti, na África selvagem, resolveu criar critérios para comer zebras, gnus, cervos, javalis e outras variedades. As reclamações eram frequentes por parte dos que estavam abaixo na cadeia alimentar, sempre vítimas, mas dispostas a reagir à hegemonia leonina. Os mais anciãos resolveram então propor uma nova sistemática. Em vez da caçada tribal, familiar, em que leões mandavam e leoas obedeciam, começaram a criar novas formas de caçar. Leoas poderiam contar com a ajuda de machos que não eram alfa no bando, ou poderiam contratar hienas ou leopardos. Claro que eles cobravam a parte deles, mas era certeza de carne todo dia. Aquele negócio do leão se empanturrar de carne e ficar o dia e a noite inteiros arrotando choco e morrendo de dor de barriga não existia mais. Agora poderiam escolher as partes mais moles, passar tempo se dedicando à educação dos leõezinhos e das leoas, era tudo mais econômico e fácil.

Não foi preciso mais que dois anos para que, em pouco tempo, a demanda fosse maior e só aumentasse. A população leonina crescia e avassalava a planície. A comida já começava a faltar e a barbárie prometia voltar à savana. Pensa-se daqui e dali. O jeito era parar de explorar a população de comestíveis, e tentar controlá-la. Um jovem visionário, passando por cima de vários leões mais experientes propôs algo que foi aceito pela maioria: tentar controlar a população de zebras. Mais deliciosas, seriam muito bem-vindas se fossem mais fáceis de manejar. Tentativas militares muitas de cercá-las e confiná-las em um vale verde adiantaram de nada. As fugas constantes decepcionaram a todos. Outro visionário chegou com uma ideia muito escalafobética. Como a fome e a desordem já estavam em níveis inacreditáveis, a população de leões em risco de desaparecimento, os que sobraram não tiveram escolha a não ser ouvir o doido do leão com sua ideia mirabolante. Eles escolheriam uma zebra bem mau-caráter, daquelas que não valem nada, e a pagariam caro para ela disseminar ideias entre o rebanho… Ideias religiosas, espirituais. Uma zebra-messias passaria a pregar uma religião de austeridade e conforto, prometendo-se o livramento dos leões e outros predadores para os melhores, os mais justos. Assim aconteceu. Em pouco tempo, um grupo aderiu. O governante das zebras foi contra e mandou matá-los. Em pouco tempo, os leões tinham zebras do rebanho para comerem a custo zero, pois a pena de morte era abandonar os condenados no Vale das Hienas, empregadas dos leões. Tempos depois, a fé desse grupo só crescia. E conforme dizia o leão visionário, inventor disso tudo, um dia o governador seria um dos religiosos. Dito e feito. A zebra-alfa tornou-se crente. A primeira coisa que ela fez foi tornar a religião das zebras algo estatal. Todos deveriam ser iniciados na religião pelos sacerdotes, as crianças que nascessem já seriam iniciadas. Os pecados eram crimes. O sumo-sacerdote da religião gozava de privilégios junto ao governante e, estimulado pelos leões, ajudou a criar um código de leis e conduta tão rígido, que zebras antes de entrar na adolescência poderiam ser condenadas por crimes horríveis contra a religião. A indústria de vítimas estava pronta. A população leonina se fartava de novo de carne. Foram décadas de fartura.

No entanto, o mal era cíclico. Logo não havia mais como condenar tantas zebras à morte. Um reformador entre eles passou a pregar outras coisas. Os condenados dessa nova religião eram afogados no lago dos crocodilos. Podia ser bem conspiração daqueles lagartos asquerosos, pensavam os leões. Mas fazer o quê? Agora havia menos zebra ainda para ser comida. Um ataque à planície destruindo tudo até que era um apocalipse já anunciado, mas era um paliativo, pois quando todos se fartassem o que iriam comer, a grama? Para piorar, nem grama andava nascendo direito. A seca assolava o Serengueti e meses sem chuva deixavam as zebras magras, secas e de gosto ruim.

Novas ideias surgiram e um novo projeto visionário de incutir na cabeça das zebras que elas poderiam ser livres para crer no que quisessem saiu do forno dos miolos de outro jovem. O projeto foi votado e ganhou apertado de outro que pretendia atacar uma manada de elefantes que passava todo ano por ali. Fracos e preguiçosos, desacostumados há anos à caça tradicional, de unhas curtas, porque era moda, os ricos mais gordos e os mais pobres sem forças, tendo perdido o apetite à comida fresca e com nojinho de carne sangrando e matança, os leões apostaram todas as fichas nessa novidade. Foi uma revolução entre as zebras. Mortes, brigas, guerra, mataram o governador e toda sua família, depois os sacerdotes da crença, depois uns aos outros e por fim, um golpe de uma zebra militar criou um império equestre como nunca se viu antes. As zebras, aproveitando-se das ideias que as religiões haviam fermentado ao longo dos tempos se organizaram e criaram uma sociedade igualitária. Mas essa sociedade tinha leis rígidas e logo se tornou uma fábrica de anormais. Zebras criminosas que se pintavam todas de preto, ou clareavam o pelo para ficarem brancas, casamentos inter-raciais com cavalos e muares escandalosos, vícios e mais vícios produziam zebras divergentes que lotavam sanatórios, hospitais e por fim cadeias. Condenadas à morte no Vale das Hienas, a próspera sociedade das zebras era o mais eficiente frigorífico de todos.

Uma crise, no entanto, se instalou, anos depois. Havia outros animais em jogo, a demanda pelas pastagens e recursos naturais criava uma pressão inimaginável sobre a planície. As nascentes pisoteadas de zebras não davam mais água limpa. Outros herbívoros foram se afastando e desaparecendo, o que gerava um desequilíbrio imenso. A população das zebras estava ameaçada, mas contraditoriamente só crescia a cada momento. O arrocho da falta de recursos fez com que grupos de zebras tentasse suplantar outros e dominá-los. Novamente, mais carne para o Vale das Hienas, e um ciclo de guerras quase interminável arrasou o mundo das zebras, que custaram a se reerguer, depois de um tempo. Sem capim para comerem, foram convencidas por seus governantes a lançar mão de alternativas. Começaram a comer outros vegetais, a derrubar a savana para fazer o capim crescer por pastos maiores, pressionar o ambiente de tal maneira que a comida começou a faltar. Isso fez com que os bocados de capim passassem a ser mais caros a cada dia que passava. A água, antes abundante, passou a ter o uso controlado. Os leões olhavam aquilo com certo medo, mas fazer o quê? Na sociedade deles, a mesma pressão, os mesmos problemas de recursos, se eles não explorassem uns aos outros, ninguém exploraria as hienas que deixariam também de explorar zebras, isso significaria uma volta à barbárie de antes, brigas internas e o mais forte vencendo. Como os ricos eram débeis e não tinham nem sequer caninos longos mais para rasgar um gnu entre os dentes, ou era isso, ou a extinção.

Outros leões passaram a sugerir novas formas de explorar, explorar outros animais, comer elefantes, rinocerontes ou hipopótamos, por exemplo. A última opção dava calafrios, já que leões não eram bons nadadores. Outros animais despenderiam muitos recursos para serem controlados como as zebras foram um dia. Pequenas experiências como cervos davam certos, apesar da carne dura e de difícil digestão. Ademais, médicos leoninos diziam que a carne de javali era prejudicial pois aumentava o colesterol e dava câncer. Sem opção, leões e zebras controlavam suas populações evitando a contracepção, mas isso nem adiantava mais, pois a falta de leões ou zebras jovens nos grupos inviabilizava o fluxo social e o trabalho. Se temos que explorar uns aos outros, precisamos fazer isso com os mais jovens, pois eles duram mais tempo no serviço pesado. Tanto a sociedade leonina quanto a das zebras foi ficando cara aos seus governantes, que diante de um caos quase que inevitável, apelavam para a violência entre os seus como forma de controlar os insatisfeitos.

Finalmente a república das zebras foi às últimas. Um ditador entre as rajadas preferiu isolar-se das hienas e passou a condenar os dissidentes ao lago dos crocodilianos. Sem opção, os leões declararam guerra às zebras, que ajudadas por crocodilos e outros grupos fartos de animais, expulsaram os leões para longe da margem lacustre onde tinham seu país. A sociedade dos leões desapareceu e grupos de leões nômades passaram a serem vistos pela planície, caçando como antigamente, comendo o que dava. A pressão sobre as zebras parecia ter diminuído. Mas a ditadura continuava a afogar centenas de zebras todo mês no lago dos crocodilianos. Zebras rebeldes que denunciavam a ideologia réptil entre os mamíferos quadrúpedes conseguiram proclamar uma república na planície, finalmente. As zebras eram livres de novo. Agora escolhiam seus líderes e se organizavam de acordo com a necessidade de seus grupos minoritários. No entanto, não deixavam de condenar ao afogamento os criminosos entre elas e novas formas de governo surgiam entre elas. O problema maior, parecia ser o número de crocodilos no lago que aumentava tanto que quase não se via mais água entre eles…

 

 

Alex Mendes

Alex Mendes é professor, graduado em Letras, Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Reside em Goianésia, ensina língua portuguesa e inglesa na rede estadual de Goiás

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