Afinal, o que é correto em língua portuguesa?
Ainda hoje há os puristas da linguagem, aqueles que fazem questão de apontar todos os erros possíveis e impossíveis no que as pessoas escrevem o dizem. São os policiais linguísticos da norma padrão, eles não a usam o tempo todo e nem com eficiência, mas são capazes de ver e ouvir os menores erros possíveis, apontá-los com escárnio, mostrando seus preconceitos, aliás, suas opiniões fundamentadas nas mais profundas e arraigadas ideias de que a linguagem deve ser uma espécie de monumento puro, casto, para além das mazelas da humanidade. A língua possui em si, mesmo na palavra mais chula, um quê de sagrado, de místico e incompreensível. Mas é certo alguém “corrigir o português” dos outros? O que é correto? Corrigir ou não? Deve-se ou não acreditar nos limites impostos pelos que controlam a língua?
Dizem os hebreus que Deus criou o mundo por meio da palavra, o ato antes de qualquer ato, a enunciação seria, desde então, uma espécie de emanação do espiritual para o mundo concreto. Essa capacidade da linguagem de criar o mundo ao nosso redor, no entanto, não é real. Ela é falsa, o mundo ao nosso redor é que criou a linguagem, produto da vivência em sociedade. Se a linguagem não cria o mundo, ele, no entanto, não pode chegar até nós sem ela. A existência humana sem a mediação de qualquer forma de linguagem é limitada. O sucesso de qualquer sociedade depende da comunicação, e por isso, da língua e de suas formas de disseminação em sociedade. A linguagem é o capilar por meio do qual o poder se imiscui nas menores das células de convivência humana, e ela é também esse mesmo poder que carrega. Aprendemos ao estudar as sociedades que o poder se exerce por meio de um saber: uma posição a partir da qual se pode nomear um sujeito para autorizá-lo a algo. A linguagem é o saber-mor, o mais antigo deles, provavelmente o mais efetivo até hoje. A linguagem é poder. A língua falada e escrita, a principal de todas as linguagens, é uma instância privilegiada de poder, não importa em que época se esteja, seja no passado, no agora ou num longínquo futuro que pode não nos esperar.
Dizer que algo é correto em linguagem é exercer um poder muito forte. Voltemos à história. Por meio de um decreto, Marquês de Pombal, primeiro ministro português, proibiu, em 1758, o ensino e o uso do nheengatu, interlíngua indígena de base tupi-guarani, decretando a língua portuguesa como oficial no país, silenciando milhares, milhões de pessoas, dificultando a comunicação, provocando uma diminuição radical do uso da antiga língua geral, protegida, gramaticalizada e ensinada pelos padres jesuítas até então, a lingua brasilis, de facto, non de iure. Esse foi o maior dos erros de português que se conhece, perdendo somente pelo reconhecimento das terras feito por Cabral duzentos e cinquenta e oito anos antes. Esse ato de barbárie linguística pode ser comparado ao silenciamento imposto aos africanos que, chegando aqui, não puderam ensinar (a não ser às escondidas) a sua língua aos seus descendentes. A opressão portuguesa acabou criando o que chamamos de português brasileiro (o PT-BR), ao ocupar espaços e se encher de vocábulos até então estrangeiros oriundos das línguas indígenas e africanas, para poder dar conta da realidade da vivência no ultramar. Mas que isso não descaracterizasse o idioma, protegido pelas leis da colônia Desde então, o certo é o português, não o índio ou o negro.
As correções modernas dos vigilantes da língua moderna são herdeiras dessa época de violência colonial. Quanto mais parecido com o europeu, mais certo é considerado o português pelas pessoas, quer sejam representantes do senso comum, quer não sejam. Os consensos a respeito da língua mostram um conservadorismo constrangedor, mesmo entre as pessoas mais pobres e menos letradas. Todos aceitam o certo como aquilo que é o imposto, mesmo que isso traga prejuízos linguísticos extremos a determinadas classes. Fruto de uma imposição violenta do passado, o padrão linguístico dificulta a vida dos mais pobres, retirando-os de possíveis lugares de fala, não se permitindo a todos a palavra, mas somente aos iniciados aos seus mistérios.
Aparentemente, a escolarização básica seria o suficiente para que esse mistério fosse desvendado, mas não é. Desde a determinação de péssima qualidade de ensino nas escolas destinadas aos mais pobres até a interdição do pobre à palavra, pela dificuldade de se comunicar por escrito ou pela fala, tudo colabora para um silenciamento seletivo de camadas específicas da população. Ao pobre que fala mal, “errado”, não há plausibilidade para que sua escrita seja levada a sério. Suas placas dizendo “aluga-se dois barraco”, “fais freti” ou de “vendi geladinha” quase não são levadas a sério, quando não são totalmente ignoradas, menos pelos que se interessam a decifrá-las, ou por interesse no que anunciam, ou por interesse em saber o porquê de sua existência como tal. Ao pobre que consegue escrever melhor, não é dado o espaço para poder escrever à vontade. O escritor só existe em função do leitor. Se o que se escreve não vai ser lido, não vai ser entendido, nem passado adiante, então para que escrever? O silêncio das letras pobres se faz sentir, agudo, chiando, zunindo nos tímpanos dos mais sensíveis o tempo todo. A voz, a caneta, o teclado de computador está nas mãos dos mais abastados, dos que não cometem erros, dos que usam bem a palavra porque a aprenderam corretamente.
Um professor, esses dias, disse que não ensinava gramática normativa, a não ser em casos mais extremos, porque seus alunos precisam saber o que está escrito numa bula de remédio, num anúncio de classificados, numa receita, e não exatamente análise sintática. Eu concordo e muito. Não só concordo, como ensino desse modo também. A rede de ensino em que trabalho também já descobriu, absorveu e usa isso como arma para proteger a língua portuguesa dos antigos herdeiros do nheengatu: aos pobres, os gêneros textuais, mesmo desconectados dos reais usos da língua naquele estrato social. Os ricos que estudam em escolas particulares: a dureza da análise sintática, as joias da tiara que sua classe usa e ostenta. Enquanto isso, basta ao pobre saber ler mal-e-mal uma ou outra coisa, saber escrever se corrigindo ao mínimo, hesitando entre escrever “quiser” com S ou Z. Mas há ricos assim. Sim. Há. Muitos, o ensino para pobres e ricos é diferente, mas ambos podem chegar a resultados positivos e negativos semelhantes. Não há como controlar a língua e nem como conter sua capacidade de espalhamento e disseminação e não há como parar a iniciativa individual de algumas pessoas. Alguns, mesmo sob o cansaço extremo da jornada de trabalho, acham tempo para ler ou se aperfeiçoar na escrita. Outros, com a faca e o queijo na mão, preferem não encarar a língua e aprender sua norma padrão.
Mas o que é correto? Para mim, o correto é que todos usem a língua com liberdade e o seu ensino com eficiência não conheça limites de classe social, como é hoje, de modo descarado. O certo não é corrigir as placas penduradas nas casas pobres de bairros populares e favelas, nem peneirar as centenas de fachadas de lojas nos centros das cidades atrás de acentos faltantes nas palavras. Desde que chegue a tempo na minha casa, qualquer entrega vale, a domicílio ou em domicílio. Se casas são alugadas, pouco interessa a quem precisa alugar se na placa está escrito aluga-se ou alugam-se. Mesmo que não exista formas do passado em primeira pessoa do singular terminadas em -O, existe o delicioso e goiano fiço, ou fisso, subtituto do fiz, igualmente inteligível e capaz de passar a mensagem adiante. O correto é que a sanha corretora seja substituída pela sanha de se democratizar a linguagem. O mais certo mesmo, seria uma tomada de poder no Brasil por um líder indígena e um decreto proibir a língua portuguesa, em favor do nheengatu. Podemos sonhar com isso para 2058, trezentos anos depois do silenciamento imposto por Pombal?