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Os sentidos do Hino Nacional

 

Conhecido como um dos mais belos símbolos pátrios do mundo, o nosso Hino Nacional mostra, desde a composição de sua letra há quase um século, uma visão romântica e pujante de uma nação marcada principalmente pela força da natureza intocada. Esse é o Brasil que se pretende mostrar na república das espadas, após o fim do segundo império:um país de cidades litorâneas e de interior quase intocado, o mesmo sertão de Alencar e Taunay, em contraponto aos projetos de metrópole que iam se criando no Rio de Janeiro e São Paulo. E assim a letra do Hino Nacional apresenta o Brasil: a pujança da natureza, os olhos fixados no futuro. Sobre a cabeça do povo brasileiro, céu estrelado, a terra rica em ouro e verde é seu berço. Nada pode deter essa nação para um projeto de república, a glória austral, o povo que há de fazer da América do Sul a nova Europa.

No entanto, a história do Hino Nacional mostra o quão superficial é essa ideia de grandeza brasileira. A música, do século XIX, uma marcha vitoriosa, possuiu várias letras. Foi executada pela primeira vez quando Dom Pedro I abandonou trono e se foi do Brasil. Era o hino de sua abdicação. Dom Pedro começara como libertador do Brasil e se tornara uma persona non grata. Era o Hino ao 14 de abril de 1831, ao fim da opressão absolutista do monarca e o início do período regencial, conturbado e importante para o futuro do país. De letra antilusitana e antissemita, a música mostrava as aspirações de grandeza e expansionismo do país. A letra foi mudada para a coroação do novo imperador, Pedro II e as mudanças fizeram-no tão popular que os republicanos, após 1889 não quiseram mudar-lhe a música. Após quase duas décadas de polêmica, a letra foi aprovada, enxugada, mas manteve-se erudita e cheia de termos raros. Apesar do parnasianismo da época, o romantismo está presente no tema extremamente nacional e ufanista. As belas palavras raras, apesar de sonoras se organizam em quarteto em que o segundo e o quarto verso rimam. As rimas pobres mostram a prevalência da substância sobre a forma, algo incomum nas tradições castiças de composição da época. O romantismo da letra é totalmente reafirmado pelo uso de versos da “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias em citação direta, o poema romântico nacionalista mais famoso a respeito do Brasil.

Muitas pessoas criticam o Hino Nacional, ele é fruto de uma época histórica e apresenta uma visão otimista do país como um todo: povo e terra. Isso pode soar ufanista, mas é algo muito positivo. É o hino que menos faz referências a guerras, conquistas e mortes. Talvez pela ausência de uma luta profunda contra um inimigo europeu na nossa história, pela independência realizada no seio das classes dominantes, falta-nos um passado em que índios, negros e pardos se armaram para lutar por um país. O hino reflete também a necessidade de se entender o país como progressista num momento em que a América do Sul inteira estava um século inteiro atrás da Europa na corrida desenvolvimentista. Sem a indústria, as metrópoles e o desenvolvimento das suas principais cidades, essa música pretendia fazer com que todos olhassem para frente, para um futuro pujante tendo a natureza exuberante do país como moldura.

Voltando à forma do Hino Nacional, seu tom em Fá maior com Si bemol na armadura é confortável para a execução das vozes de todos os naipes. Sua melodia é sofisticada, mas única e bela, de fácil memorização. A ideia da letra se perde nas palavras desconfortáveis, de pronúncia incerta, na inversão da ordem sintática nos versos. Antes, matéria obrigatória em todos os anos escolares, sua presença nas capas traseiras dos livros didáticos que o governo compra e distribui aos alunos faz contraponto ao desprezo pela letra e pelo símbolo nacional. Não é um lamento sobre algo que não está a resistir ao tempo, mas a constatação que o símbolo nacional ainda resiste, mas como item da cultura popular, ligado ao futebol, às outras poucas conquistas do esporte brasileiro fora dessa modalidade. Recentemente, as palavras difíceis do Hino foram jogadas em protestos contra o governo de centro-esquerda do Partido dos Trabalhadores (brado retumbante, raios fúlgidos, raio vívido, impávido colosso, lábaro que ostentas estrelado, flâmula, clava forte), como se essas palavras bonitas tivessem sentido político contestador profundo, assim como é a Marselhesa um hino que conclama todos às armas em defesa da França.A única referência bélica do Hino Nacional joga para o futuro a possibilidade de luta de um povo que não fugirá frente uma batalha.

Mas desde que essa letra foi escrita e adquirida pelo governo como propriedade da república, duas coisas permanecem a respeito do Hino Nacional: a primeira delas é a possibilidade de guerra em que seu povo mostrará seu valor, que sempre é jogada para o futuro. A segunda delas é ignorância a respeito de seus termos difíceis e temática. É uma música muito bonita, todos concordam, mas seu sentido é muitas vezes entendido de forma equivocada no nosso presente, como nos exemplos a seguir.

A adoção do Hino Nacional nos protestos desde 2013-2014 tem um sentido político claro. Protestos aparentemente populares que se revelaram como uma profunda contestação ao governo do Brasil tinham como reivindicação o retorno a tradições antigas, a revalorização de símbolos da pátria, o combate à diversidade e a destituição dos governantes do poder em prol de representantes mais aristocráticos. Nesse sentido, a poética, a semântica dos termos sofisticados do português erudito passou a significar os desejos de uma classe. Nos vislumbres da classe média alta, principal atriz dos protestos, da elite, dos sindicatos patronais, o colosso somente seria impávido se seus anseios de classe ditassem ao poder o que se fazer na pátria amada Brasil. O lábaro que, depois da Ditadura Militar, o povo ostentava estrelado em frentes de biquínis e maiôs, atrás de sungas, em roupas curtas, seria o céu brilhante de estrelas de um país em que o poder estava na mão certa, aquela que deseja guiar o povo que tem que ser guiado, não chamado ao poder.

O Hino Nacional passou a ser o brado retumbante do funcionário público aposentado em dois contratos, um municipal e outro estadual, ganhando cinco dígitos. Passou a ser o brado retumbante do juiz aposentado reclamando da alta do dólar, passou a ser a trilha sonora do filme da classe média e alta que questionavam a política centro-esquerdista do país e que se degenerou primeiramente em conservadorismo. Depois em pensamento retrógrado. Por fim em revisionismo histórico, fundamentalismo católico ou evangélico, depois em pensamento antirracional, anticientífico, e achou lugar junto a movimentos de retorno à ditadura, movimentos que buscavam provar que a Terra é plana, ou aqueles contrário às vacinas ou ainda mesmo a seitas e cultos a personalidades, e dali para a eleição para presidente. O resultado está aí. O presidente eleito, ao som do Hino Nacional, ressignifica os adjetivos raros e substantivos incomuns e dá a eles o significado que quer. Sem se importar com isso, o torcedor de futebol, antes de começar a sua partida, ouve e dança o Hino Nacional como se fosse funk. Aliás, uma versão funk da música do Hino fez sucesso, mesmo sendo praticamente crime de leso-patriotismo, um crime que talvez o governo atual quisesse punir com rigor, mas não pune.

Desse modo, o grito de forte som do povo, o sol de raios brilhantes, o tamanho monumental e que impõe força do país, o céu com uma visão estonteante da Via Láctea à noite, a bandeira verde e a amarela ou a forte arma da justiça de repente se tornam aquilo que o ouvinte que ignora esses significado quer. Torna-se grito de indignação porque a passagem de primeira classe aumentou por causa do dólar. Torna-se o brado de fúria contra um mundo que já foi engolido pela modernidade e só reside na mentalidade atrasada de gente que não durará meio século sobre a Terra. Torna-se música cantada errado nas escolas, quer por professores que se embaraçam em construções silábicas distantes daquilo que falam todo dia, quer por alunos que confundem serra dourada com terra adorada. Torna-se o introito do jogo que já vai começar e o importante não é o país, mas a pátria de chuteiras que um dia deixou o planeta, ou a terra achatada na cabeça de alguns, de joelhos honrando a glória maior do Brasil que jamais fora profetizada em seu Hino de louvor às belezas da pátria: o futebol.

Alex Mendes

Alex Mendes é professor, graduado em Letras, Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Reside em Goianésia, ensina língua portuguesa e inglesa na rede estadual de Goiás

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