Filosofia e Ideologia
Uma das invenções mais incríveis da humanidade, sem dúvida, é o idioma. Fruto da nossa capacidade inata de linguagem, o idioma impressiona por sua característica transmissora dos mais diversos tipos, categorias, espécies e etc., de sinais e signos, todos dotados de um significado que os define. Sem querer aprofundar-nos na questão técnica, ou formal, é justamente sobre o significado que iremos nos debruçar.
Por sua própria complexidade, os idiomas humanos em geral tendem a possuir características que muitas vezes coincidem entre si, gerando lacunas de interpretação que dificultam a transmissão do discurso. Uma destas lacunas é a ambiguidade, por exemplo. A ambiguidade requer que determinada palavra esteja devidamente contextualizada para que possa fazer total sentido, condição sine qua non para compreensão total do tema tratado no discurso por parte da audiência. Mas esta não é a única lacuna que encontramos. Pois bem.
A própria conceituação de determinadas palavras, ou seja, a apreensão de seu significado, às vezes é dificultosa, prejudicando a compreensão total por parte de quem se propõe a conceituar e permitindo apenas uma compreensão parcial daquele termo. Dessa forma, faz-se necessário o auxílio de materiais que facilitem esta conceituação, a fim de sanar as dúvidas surgidas e esclarecer o significado daquela expressão.
Dicionários são excelentes auxiliares neste momento. Utilizamos o plural justamente para chamar a atenção da existência de dicionários gerais e de dicionários específicos, que terão papéis distintos neste trabalho de conceituação.
Sob esta perspectiva, eis que encontramos dois termos de dificílima conceituação e que, na maioria das vezes, suscitam debates infindáveis por ignorância de um ou de mais debatedores: filosofia e ideologia. Ora, uma conceituação devida destes dois termos demanda mais trabalho do que o tempo de uma única vida humana é capaz de prover, e muitos já tentaram. Sem querer discordar do que já foi consagrado pela humanidade, no tocante ao significado destas duas palavras, nos detemos apenas nas definições mais amplas já dadas a elas, a fim de ilustrar o que será tratado nos parágrafos seguintes.
Filosofia é amor pelo saber. Simples e sem rodeios. Mas é amor em sua mais pura expressão: um amor sem fins externos. O amor pelo saber é desinteressado, inútil (do ponto de vista prático), ordinário e ingênuo, para dizer o mínimo. É amar o saber pelo simples fato de amar, sem querer receber vantagem em troca disto. O filósofo é aquele que ama o saber (não aquele que ama saber, que será exposto mais à frente), ou seja, aquele que olha para a realidade sem nenhum interesse a não ser a intenção mais pura de conhecê-la em sua totalidade.
Conhecer a realidade por completo, sem nenhum interesse outro, é a atividade do filósofo, e com isto concordam os mais diversos trabalhos publicados ao longo da história que trataram deste assunto, desde os gregos.
Ideologia é um termo mais capcioso. Não trataremos aqui de “ideologia” enquanto ciência que estuda a origem empírica das ideias, mas sim da concepção comum da palavra. O termo “ideologia” é utilizado para definir determinado conjunto de ideias que permeia os diversos grupos sociais que integram a sociedade, ou seja, é um ideário, um imaginário grupal. Um excelente exemplo disto é o futebol. Não o esporte em si, obviamente, mas o imaginário que ele constitui. Defender com unhas e dentes determinado time de futebol é conferir status ideológico ao esporte. Explicamos: ao defender um único ou alguns poucos pontos de vista, o indivíduo se fecha para os demais.
Faz-se necessária, então, uma análise dos juízos que o levaram a defender tal ou tais pontos de vista, ignorando os outros por completo. O conhecimento humano parte de três tipos de juízos: de gosto, de valor e de fato.
O juízo de gosto é baseado única e exclusivamente na opinião da pessoa que o emite. Dizemos então que o juízo de gosto é relativista : aquela opinião que eu emito é reconhecida como verdadeira para mim por me agradar ou concordar com minhas características. Voltemos ao futebol. Torcemos por determinado time porque vê-lo ganhar nos agrada, ou porque agrada nossos pais, amigos, parentes, etc. Obviamente não é apenas por isto, mas este é geralmente o motivo principal. Por exemplo: eu gosto do Barcelona. Simples e sem necessidade de mais explicações.
O juízo de valor é baseado numa análise comparativa da coisa observada, para que, em relação às outras, ela produza determinado valor, que será reconhecido por uma maioria qualitativa de pessoas. Ele complementa o juízo de gosto. Por exemplo: os jogadores do Barcelona jogam bem, por isso eu gosto do time. “Bem” ou “bom” é um valor. Baseado neste valor, você elabora seu juízo de gosto. Mas diferentes pessoas atribuem diferentes valores a uma mesma coisa. Assim sendo, é necessário mais um complemento a estes valores para que se justifique o valor atribuído à coisa.
O juízo de fato é baseado numa análise minuciosa, precisa e criteriosa da realidade, a qual não deve deixar dúvidas sobre a coisa analisada. Alguns argumentam que é impossível que um ser humano produza um juízo de fato, por estar maculado pelos outros juízos. Deixemos isto de lado por um instante e analisemos o juízo de fato: eu gosto do Barcelona (juízo de gosto) porque os jogadores do time são bons (juízo de valor) porque eles possuem habilidade, técnica, boa movimentação, criatividade, entrosamento, velocidade, precisão e etc. (juízo de fato). Obviamente, esta afirmação poderá suscitar dúvidas, ser relativizada, contestada, negada, refutada, rejeitada; e inúmeras outras reações. Mas uma coisa resta comprovada aqui: dispusemo-nos a analisar de onde veio esta noção. Nossa atitude deixou de ser ideológica e passou a ser filosófica.
Diante do exposto, não podemos deixar de concordar com o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, que expôs esta análise de maneira brilhante em sua obra “A Filosofia e seu Inverso” (2012). Ele afirma que um filósofo é como um expectador de uma corrida de cavalos (a corrida sendo determinado assunto, e. g. futebol; e os cavalos sendo as hipóteses levantadas dentro daquele assunto, e. g. Barcelona, Real Madrid, Bayern, Juventus, etc.) Mas ele não é um expectador qualquer.
Enquanto os outros expectadores apostam em determinados cavalos, o filósofo não aposta em nenhum. Quando a corrida acaba, os apostadores ficam satisfeitos pela vitória ou arrasados pela derrota, o filósofo não. Ele fica genuinamente feliz com a vitória de qualquer cavalo, pois não estava torcendo por nenhum, já que duvidava da vitória de todos, e parte para assistir outra corrida, repetindo esta atitude enquanto viver.
Nessa perspectiva, temos a presença de duas personalidades distintas: a do filósofo, já explicitada, e a do filodoxo. Ora, se o filósofo é o amante da sabedoria (sophía), o filodoxo é o amante da opinião (doxa), é aquele que permanece nos juízos de gosto e de valor, não se dispondo a transpô-los para compreender melhor a realidade. Se não é possível que o ser humano profira nenhum tipo de juízo de fato, a tarefa do filósofo é fazer com que isto seja possível, através da dúvida e da propositura de novas formas de interpretação da realidade, que se aproximem cada vez mais desta, até que não reste mais nenhuma dúvida.
A simples tentativa de aproximar-se da realidade já confere ao ser humano um novo espírito. A persistência nesta tentativa confere ao ser humano um espírito filosófico. Sem medo de advogar em causa própria, convidamos todos à Filosofia e a filosofar, pois somente com esta atitude é que podemos almejar responder as perguntas que ainda pairam sobre a humanidade.