Colunistas

A arte moderna e seu afastamento da ideia de belo em Hegel

Aurélio Sampaio Carrilho de Castro Póvoa
Hugo Santos Vieira

A interpretação da realidade é uma das mais difíceis tarefas a que o ser humano se propõe. Ciência, religião e filosofia se debruçam sobre ela desde tempos imemoráveis e ainda não conseguiram chegar a um consenso sobre sua verdadeira natureza. Outra área do espírito humano que se debruça sobre a realidade é, sem dúvidas, a arte. Seja para representá-la, imitá-la, compreendê-la ou qualquer que seja o seu intuito, a arte possui o poder privativo de transformar a realidade em sentimento e tornar a existência mais profunda.

Durante a história, diversas foram as tentativas de exprimir e provocar esses sentimentos através da arte. Das pinturas rupestres até o hiper-realismo, observamos inúmeras maneiras de apresentação da arte, que teve como seu foco, até certo período no tempo, aquilo que é belo.

A definição de “belo” é difícil e encontra diferentes esteios ao longo da história. Para isso, fez-se necessária, então, uma filosofia da arte, que teria como objetivo fornecer uma hermenêutica daquilo que seria necessário para que determinada obra se constituísse como arte. Desde Platão (428/427-348/347 a.C.), as discussões acerca da beleza permeiam o ambiente filosófico em geral de maneira avassaladora, culminando num dos maiores expoentes acerca deste tema, o alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), cuja concepção de beleza separava-se das demais por um caráter absoluto que esta possuía.

Segundo Hegel, a consciência humana faria parte de algo que ele chamou de “Espírito Absoluto”, que seria a causa primeira de tudo o que existe no mundo. Dessa forma, ele pôde argumentar que algumas expressões da consciência humana possuíam caráter absoluto, ou seja, objetivo e eterno. Ora, se a arte é absoluta, então nem tudo é arte, já que a expressão do artista careceria de preencher alguns requisitos para que fosse considerada verdadeira arte. Estes requisitos foram chamados por Hegel de “estética”. A estética seria aquilo que define a obra enquanto arte, pois, segundo ele, a arte não carece de explicação. Assim, se a estética da obra estivesse em total convergência com o Espírito Absoluto, ela seria arte.

Mas, o que diz a “estética”? Segundo Hegel, a estética seria um corolário da Filosofia do Espírito, contemplando aquilo que é belo (o Belo, com “B” maiúsculo) como elemento central da obra de arte, sendo que a Ideia (forma ideal) da obra deveria manter perfeita conformidade com a matéria sensível, ou seja, aquilo que a obra representava devia ser belo por estar em conformidade com a perfeição ideal e com a realidade que percebemos. Explicamos: uma escultura humana seria bela se representasse a perfeição do ser humano, pois o artista deveria transmitir este ideal de forma que ele fosse perceptível a todos nós.

Assim, percebemos a preocupação do filósofo alemão de que a arte fosse condutora de sentimentos e emoções que afetassem o nosso espírito e inspirassem em nós o divino e a busca pela verdade. A obra de arte deveria ser transcendental, ou seja, deveria possuir impacto estético tal que fizesse com que o expectador ultrapassasse os limites da realidade e da razão e fosse consumido por uma revelação divina, conhecendo o Espírito Absoluto e a verdade.

Para realizar tal feito, o artista deveria possuir algumas habilidades ou técnicas que o permitissem aspirar a este Espírito Absoluto e transmitir esta inspiração para o objeto de arte. Através do gênio humano, dotado de capacidade e talento, o Espírito se manifestaria na matéria adquirindo forma e figura que se revelariam arte. O artista deveria dominar com tal proficiência a técnica de modo que sua produção manifestasse com profundidade a sua Arte em particular que, por ser Arte em si, é também manifestação do Espírito Absoluto. Esta técnica faria com que o artista adquirisse virtude e transmitisse-a através de sua expressão artística.

Entretanto, esta noção encontrou resistência nos séculos posteriores, com o surgimento do materialismo histórico-dialético, proposto por outro filósofo alemão, Karl Heinrich Marx (1818-1883). Dentro da perspectiva de Marx, não haveria um Espírito Absoluto e o que moveria a consciência humana seria o mundo sensível, representado na forma de agentes históricos. Desta forma, a Arte perderia seu caráter ontológico e passaria a ser apenas uma expressão histórica da realidade. A influência de Marx culminou na formação de diversas correntes que descartavam o Belo enquanto elemento central da arte e que propunham a exposição daquilo que é feio e estranho como expressões genuínas desta.

Alguns dos maiores representantes destas correntes foram os teóricos do Instituto Frankfurt de Estudos Sociais da Universidade de Goethe, mais conhecido como Escola de Frankfurt. A proposta frankfurtiana seria de contraposição ao Belo, em favor de expressões dos aspectos mais básicos da existência humana. A condição humana, e principalmente o corpo humano, chamaram muito a atenção dos frankfurtianos, que se propuseram a descrever um novo conceito de arte, baseado num completo relativismo estético, onde não haveria parâmetros para definir o que seria belo e, consequentemente, o que seria arte. Este esvaziamento do Belo, conforme compreendia Hegel, deu-se principalmente pela supervalorização dos aspectos práticos da arte, que deveria estar mais próxima do expectador, sendo que esta deveria ser voltada para o político, para o social e para o psicológico, noção conhecida como “espelho da realidade”, chamando a atenção para o caráter transgressivo, revoltado e subversivo desta expressão artística.

A arte passa então a ser “conceitual”, passa a possuir uma intenção por detrás da obra, não mais sendo como as expressões artísticas anteriores. A ruptura com o esgotamento da obra de arte em si mesma apresenta uma idéia de “anti-arte”, como um ânimo de interromper a expectativa por parte daquele que observa a obra, transmitindo um caráter transgressor. A desconstrução da antiga noção de arte seria o começo da nova expressão, que colocaria todos os conceitos em xeque e abriria a realidade para percepções mais próximas dos aspectos da existência e não mais do espírito.

Por fim, esta ausência de diálogo entre forma e conceito representa nada mais do que uma atitude anti-filosófica, fechada para o desenvolvimento e converge para o que dissemos no artigo anterior, a respeito de ideologia. A propositura de novas expressões artísticas deve continuar passando pelo crivo da filosofia da arte para que esta possa aspirar a compreensões sempre novas e mais próximas da realidade. Sem esta aproximação da realidade, concordamos com Hegel que não é possível a realização de nenhuma atividade humana, muito menos da arte.

Aurélio Sampaio Carrilho de Castro Póvoa

24 anos, casado. Natural de Goianésia, atualmente residindo em Goiânia. Vencedor do 1° "Soletrando", no Caldeirão do Huck. Professor de Filosofia e Inglês, discípulo dos gregos e medievais, amante da linguagem e eternamente em busca do Bem Supremo.

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