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Sobre a Neutralidade

Das mais antigas atividades humanas provenientes do intelecto e das quais geralmente tiramos o maior proveito possível, a dialética certamente dispara à frente. O termo pode parecer um tanto intimidador quando não estamos familiarizados com seu significado, mas “dialética” quer dizer nada mais do que um diálogo direcionado, travado por duas consciências em direção a um ponto superior da investigação da realidade.

Como já foi exposto em nosso artigo Filosofia e Ideologia, a nossa capacidade de comunicação nos permite criar inúmeras formas de transmissão de fatos, valores, opiniões e etc. através dos diversos idiomas espalhados pelo globo. Ora, que seria da dialética se não houvesse possibilidade de comunicação e vice-versa? Nossa investigação da realidade nos faz querer compartilhar as impressões coletadas com todos ao nosso redor e expor nossa compreensão do investigado. De maneira ordinária, isto basta para que trilhemos uma vida inteira sem nos preocupar com mais do que apenas uma boa conversa com o vizinho. Entretanto, sem retirar o mérito da boa conversa, entendemos que as implicações geradas pela dialética carecem de muito cuidado e é sobre este cuidado que iremos nos debruçar hoje.

Em um ponto mais ou menos determinado da história da humanidade, alguns homens se cansaram de aguardar a mera benevolência divina para que a vida seguisse seu curso e decidiram afastar-se ligeiramente desta mercê para tentar proporcionar uma segunda opinião acerca da realidade e da vida humana. Estes homens foram chamados de físicos e filósofos, pois eram amantes da sabedoria e investigavam a natureza enquanto realidade total e universal.

A partir do surgimento dos primeiros filósofos fez-se necessária uma minúcia cada vez maior em relação à investigação da realidade e esta minúcia deu conta do cuidado que mencionamos anteriormente. Era preciso ter extremo cuidado ao falar sobre a realidade, pois as opiniões pessoais podiam muito bem estar completamente erradas e os próprios filósofos já sabiam disso de antemão.

Dessa minúcia surgiram as ciências empíricas, com seus olhos voltados para o físico, e a filosofia propriamente dita, voltada para o metafísico, ou seja, para aquilo que está além do que podemos perceber com nossos sentidos: o ser enquanto ser, sem nenhuma determinação, sem nada que o diferencie dos outros que não seja sua própria natureza.

A ciência seguiu um caminho brilhante ao longo da história, trazendo respostas suficientes para determinadas dúvidas e a filosofia seguiu também, trazendo dúvidas suficientes para todas as respostas dadas. Este é o papel de cada uma.

Ora, desde a ágora grega, berço do milagre, o mundo presencia embates titânicos entre filósofos e sofistas, entre filósofos e cientistas e principalmente entre filósofos e filósofos, e isso é extremamente prazeroso para todos nós, pois nos assegura que provavelmente nada passará em branco na investigação da realidade.

Fiquemos um instante no debate entre filósofos e cientistas, de maneira geral. O debate em si não nos diz muito (pois sua forma pode variar e isso não interessa senão àqueles que debatem), mas sim os argumentos levantados no decorrer dele. É fato completamente aferível que a Ciência (todas as ciências) possui seus vieses de investigação e intentam provar determinado ponto de vista devido a interesses quaisquer. Não nos deteremos nisto aqui, mas sim no motivo disto. Observe que estamos trabalhando com o conceito geral e genérico de ciência, justamente porque o ponto de vista a ser analisado não é este. Prossigamos.

A medicina, ciência que investiga a fisiologia humana (por mais que possa não estar limitada a isto), quer provar suas teses e aplicar seus conhecimentos neste campo. Quer entender como surgem as enfermidades e quer produzir insumos capazes de extirpá-las para garantir a preservação da espécie humana. Quem de nós irá renegar por completo a medicina apenas por esta intenção? Creio que ninguém. Assim o é com praticamente todas as ciências.

Em seu aspecto geral, as diversas ciências desejam investigar a realidade sobre um determinado ponto de concentração e trazer soluções para o que foi investigado. O Direito quer trazer soluções jurídicas, a Sociologia quer trazer soluções sociais e a Psicologia quer trazer soluções psicológicas. Todas estas ciências juntas formam aquilo que é necessário para que a humanidade siga trilhando seu caminho sobre a face da Terra e isto nos tem servido bem até o momento. É feliz a expressão de que as ciências enxergam a realidade através de seus próprios “óculos”, ou seja, que elas buscam soluções específicas para situações específicas.

Mas se a Ciência se preocupa com as partes, onde entra a Filosofia aqui? Qual é a sua função? Ora, com o perdão do imenso clichê, o todo é a mera somatória das partes? Pois é precisamente com isto que a Filosofia se preocupa: com o todo.

Novamente recorrendo ao nosso artigo Filosofia e Ideologia, percebemos lá mais ou menos exposta esta preocupação. Conforme foi dito, os cientistas são os apostadores e as ciências são os cavalos. Os cientistas jurídicos apostam no cavalo “Direito”, os cientistas médicos apostam no cavalo “Medicina” e assim por diante, e isso inclusive não os impede de apostar e torcer por cavalos “aliados”. Ora, todos os cavalos são “Ciência” e isto só beneficia aos que dependem dela.

Ainda de acordo com o artigo, imagine-se numa arquibancada de um jóquei, assistindo a esta corrida de cavalos que acabamos de ilustrar. Para qual (ou quais) cavalo (s) você torce? Se você torce por um ou outro, por mais de um ou por todos: Parabéns! Você é um cientista! Esta é uma atitude bastante louvável da sua parte. Entretanto, se você não torce por nenhum e está ali apenas para observar: Parabéns! Você é um filósofo! Esta é uma atitude bastante louvável da sua parte.

É neste aspecto que tentamos construir este raciocínio. Em nosso artigo Contra os Acadêmicos, afirmamos que não há possibilidade de imparcialidade ou neutralidade científica. Porém, afirmamos também que a Filosofia nasce neutra por excelência, ou seja, pelo simples fato de ser Filosofia, conforme foi exposto no exemplo do jóquei.

Ora, se o filósofo não torce por nenhum cavalo, ele está a cuidar do todo. Ele observa os cientistas, os cavalos, a areia da arena, a temperatura do dia, o concreto da arquibancada, o valor das apostas, as sensações causadas nos cientistas pelas diferenças no páreo e ainda observa a si mesmo e inúmeras outras coisas. Após observar este todo, ele inicia o processo de dúvida. Ele duvida de tudo isto que foi dito e principia a dialogar com tudo aquilo que observava para que a realidade comece a desvelar-se diante dele. Ele “dialetiza” com os cientistas para que estes o ajudem a compreender melhor a realidade e também para ajudá-los em sua função. Volta e meia, ele sugere determinada solução, mas não se agarra a ela. Pode abandoná-la, caso surja outra melhor. Porém, para que esta “outra melhor” tome o lugar da anterior, é necessário que ela preencha mais requisitos do que esta. Diante disso, nos lembramos da figura de Sócrates (469-399 a.C.), ao passar todas as suas opiniões por um rigoroso crivo, para que elas fossem o mais próximas da realidade possível, ou seja, para que elas não fossem relativas, mas sim absolutas.

Com base no exposto, percebemos que estas duas figuras singulares na existência, o filósofo e o cientista, são distintas em suas atividades, apesar de rumarem para um mesmo fim: a compreensão da realidade.

Não estamos dizendo aqui que um seja melhor que o outro nem nada parecido. Estamos apenas expondo que não é exigido da Ciência que ela seja imparcial ou neutra e que, por outro lado, é impossível que a Filosofia seja parcial ou não-neutra. O verdadeiro filósofo é aquele que, apesar de duvidar de todos os aspectos da realidade, propõe diversos caminhos para que ela seja acessada, até que eles não sejam mais plausíveis e sejam substituídos por outros melhores. O fato de nunca termos acessado a Verdade Absoluta não significa que ela não exista, significa apenas que ainda não a acessamos. O verdadeiro filósofo compreende isto e tenta cada vez mais fazê-lo, ou sua função estaria esgotada, ele seria inútil e poderíamos dar por vencida toda a Filosofia. Ora, se tudo é relativo e não existe Verdade Absoluta, poderíamos mandar os filósofos às favas e teríamos vencido a realidade. Quem fosse embora por último, apagaria a luz. Porém, sabemos que não é assim que funciona.

Sócrates era uma amante da dialética. Os filósofos em geral o são. Porém, ele se utilizava de uma ferramenta extremamente poderosa para fundamentar suas intuições, a mesma que utilizamos para produzir esta nossa intuição: a Lógica. Sem Lógica, é impossível que a dialética ascenda e que a investigação da realidade frutifique, e é sobre ela que trataremos no próximo artigo.

Aurélio Sampaio Carrilho de Castro Póvoa

24 anos, casado. Natural de Goianésia, atualmente residindo em Goiânia. Vencedor do 1° "Soletrando", no Caldeirão do Huck. Professor de Filosofia e Inglês, discípulo dos gregos e medievais, amante da linguagem e eternamente em busca do Bem Supremo.

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