Homo homini lupus?
A aferição e atribuição de valor aos entes com que compartilhamos nosso espaço neste mundo é, sem dúvida, uma das capacidades mais instigantes na natureza humana. Nossa capacidade reflexiva nos permite observar a realidade e incutir valor àquilo que a compõe, incluindo a nós mesmos, auxiliando nossa expressão intelectiva e emocional. Ainda que o valor dos entes que compõem a realidade possa variar, é fato que ele está presente em tudo aquilo que nos provoca reflexão ou emoção.
Ora, o que há neste mundo a que o ser humano atribua maior valor? Apoiamo-nos no eminente filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos para responder a esta pergunta e concordamos com sua orientação de que o bem é aquilo de maior valor para nós. É possível argumentar que para o ser humano aquilo de maior valor é sua vida, mas reflitamos sobre o suicídio por um instante, a título de exemplo para os dois pontos de vista. Um suicida, na maioria das vezes, deseja eliminar seu sofrimento, ou seja, em algum grau, ele quer seu próprio bem, mesmo que isto lhe custe a vida. Obviamente, a cessação do sofrimento não representa o alcance do bem ou da felicidade, mas representa algum progresso neste sentido.
A reflexão sobre o bem, destarte, é o princípio que movimenta as nossas noções de valor. Ora, valorizamos, em primeira instância, aquilo que nos faz bem, ainda que não percebamos. Valorizamos aquilo que eleva nosso espírito, aquilo que nos dá ânimo , que nos norteia, que nos cativa, aquilo que contribui para nossa boa existência.
Obviamente, valorizamos nossa existência e, com as devidas exceções já mencionadas, fazemos de tudo para conservá-la e para proporcionar seu melhor aproveitamento enquanto podemos. Para tanto, é necessário que lidemos diariamente com a presença de nossos semelhantes, sendo que isto pode implicar uma série das mais diversas reações, tanto positivas quanto negativas. A necessidade lógica da civilização e da sociedade sempre apresentou seus problemas, devido justamente à imensa discrepância entre as atribuições de valor aos entes que estão ao nosso redor.
Isto não é exclusivo dos seres humanos, entretanto. Com efeito, os animais atribuem valor àquilo que seus instintos permitem, tal como sua própria vida, sua prole, seu território, etc. Porém, apenas nós atribuímos valor a obras de arte, objetos diversos, emoções, atitudes e a toda outra gama de entes de nossa realidade. Dessa forma, percebemos aí já mais ou menos desvelada a causa de muitos conflitos que permeiam nossa existência.
Os seres humanos estão em conflito desde que passaram a possuir a capacidade de refletir sobre a existência e suas implicações, já que esta reflexão culminou justamente na disputa entre o que já mencionamos. A nossa tentativa de agregar à nossa existência aquilo que possui valor no mundo já levou a humanidade a cometer atos que os mais sensatos homens não conseguiriam traduzir em palavras simples. Desta forma, foi necessário que criássemos um sistema que permitisse que todos pudessem desfrutar do valor daquilo que está à nossa volta, isto até mesmo nos menores valores, tal como o valor da cadeira sobre a qual nos sentamos diariamente. Este sistema é a moral.
A moral é aquilo que orienta a vida humana para a sua conservação e máxima extensão, ou seja, nós sempre queremos viver mais e melhor e precisamos de um arcabouço teórico que nos oriente para tal. É necessário que pensemos em nosso próprio bem para começarmos a agir de maneira moral. Ora, se tendemos a exacerbar nosso bem, eventualmente poderemos diminuir o valor de algo em favor daquilo que queremos, podendo prejudicar quem atribui maior valor àquele algo. Assim, percebemos a diferença entre prazer e bem. O bem é aquilo que nos guia para uma felicidade real, não para um prazer estratosférico momentâneo.
Assim, percebemos que a procura do verdadeiro bem nos leva a refrear nossas paixões e consequentemente a um agir correto, ou seja, o bem nos leva àquilo que é certo. Ora, o que é certo? A argumentação de que o bem e o certo são relativos à pessoa não se sustenta, na medida em que o nosso agir não pode ser pautado única e exclusivamente em nossa vontade. Nem sequer é necessário utilizar o outro para destituir o raciocínio relativista: ainda que seja da minha vontade voar por conta própria, as condições objetivas da realidade não me permitem realizar tal ação. A realidade segue uma ordem e a nossa liberdade está condicionada a ela, independentemente de nossa vontade. Se existe uma ordem, existe algo que é correto, caso contrário a realidade já haveria ruído e não estaríamos aqui, e se procuramos o nosso próprio bem, é porque há um bem a ser alcançado, ainda que ele não se nos tenha revelado até momento.
A possibilidade de que algo perturbe essa ordem e rompa com este ciclo do bem-viver é um temor que acomete todos os seres humanos. Ainda que não seja necessário demonstrar a obviedade desta afirmação, um exemplo básico se mostra útil: a morte. Morrer é algo que incita ao menos dúvida em todos nós, ainda que em alguns ela não incite temor. No entanto, a possibilidade de que nossa vida seja ceifada por outra pessoa é este algo que nos inspira as piores sensações. O encerramento de toda a potencialidade de uma vida humana é algo que ainda não se mostrou claro para nós.
Diante disso, é possível notar que, ainda que não produza um bem ou uma felicidade real, a moderação é talvez o melhor caminho para este resultado. A moderação nos leva ao que já foi mencionado: um refrear de nossas paixões e a um agir corretamente, sem recorrer a atitudes extremas que podem comprometer o bem daqueles ao nosso redor. Se nossa atitude é extrema e compromete, por ação ou omissão, o bem de alguém que está ao nosso redor, somos responsáveis pela reparação daquele prejuízo, seja ele de qual natureza for, vista que todo direito não é senão uma obrigação do outro de fazer ou não fazer. Nossa convivência com aquilo que nos cerca, principalmente as pessoas, nos obriga a não prejudicar de maneira deliberada aquela ordem, sob pena de reparação proporcional.
Ocorre que há momentos em que essa reparação proporcional não é possível. Ora, não é possível reparar um assassinato ou um estupro. O dano produzido por estas ações não é passível de reparação, obtendo no máximo um contentamento, que nunca será proporcional. Destarte, percebemos que é necessária uma ação anterior e preventiva destas condutas para que estas não se concretizem: a legítima defesa.
A legítima defesa não pode ser considerada uma perturbação da ordem na medida em que a sua intenção é restaurar a ordem já perturbada pelo agressor. O assassino perturba a ordem ao tentar matar alguém, este alguém reage apenas para restaurar a ordem, ou seja, preservar sua própria vida. Note-se que esta ordem não é a meramente jurídica ou positivista, mas a ordem universal. A existência é parte da ordem universal, pois, caso contrário, não existiríamos. Logo, preservar sua própria existência ante a iminência de uma perturbação da ordem é apenas uma tentativa de restauração do equilíbrio e uma aspiração ao nosso bem.
Aspiramos a um bem e só podemos fazer isto mediante nossa vida. Se nossa vida está comprometida por motivos injustos ou que perturbem a ordem universal, devemos reagir contra esta perturbação, sob responsabilidade de que isto se estenda a outras vidas, gerando uma ruptura na estrutura da realidade. É contrário à natureza humana permitir deliberadamente que se produzam atos de desequilíbrio e, devido a isto, não há justificativa plausível para que seja cerceado o nosso direito de defesa, por quaisquer meios que se fizerem necessários, sendo observadas estas mesmas regras.
Utilizar falsamente o direito à legítima defesa para produzir atos que não estejam compassados com a ordem universal significa perder este direito e estar sujeito a uma atitude, talvez drástica. Porém, antes disso, impedir que cada pessoa tenha o direito a conservar a própria vida, desde que esta esteja em confluência com o supramencionado, é uma afronta à ordem universal.