A rota para cima e para baixo é uma e a mesma
A capacidade humana de investigar a realidade e produzir juízos a seu respeito é, sem dúvida, fascinante. Somos praticamente compelidos a dizer aquilo que nos cerca, por uma necessidade muitas vezes obscura para nós. Por vezes, obscuro também é aquilo que dizemos, a depender da quantidade de meios que dispomos para nos expressar. Talvez apenas dizer não seja suficiente ou talvez nem sequer dizer seja suficiente, mas isto não limita nossa capacidade.
Ora, atualmente há no mundo uma grande quantidade de informações. O mundo se tornou uma grande ágora, onde todos nós somos debatedores. Tudo é contestável, discutível, duvidoso. Isto é extremamente positivo, do ponto de vista formal, ou seja, possuir meios de debater determinada idéia é de suma importância para o desenvolvimento humano. Se divergir é parte intrínseca da nossa natureza, não possuir meios para tal ação é para nós um suplício, algo que nos fere profundamente. Mas se possuímos tais meios, o que dizer?
De caráter aparentemente simples e banal, beirando ao clichê, a afirmação que fundamenta o título deste é de suma importância para que possamos compreender isto. Heráclito, da cidade de Éfeso, colônia grega da Jônia, foi um pensador anterior a Sócrates, de meados de 540 a 470 a.C., e autor deste célebre aforismo, cuja obviedade parece apontar um caráter de duplo sentido, ou até mesmo cômico, quando lido por algumas vezes.
Conhecido por sua obscuridade ao falar, Heráclito fazia afirmações como a que encabeça este artigo, supostamente tentando encobrir a verdade que ele alegava conhecer: o princípio regente do Universo, aquilo que dá ordem a tudo o que nos cerca, inclusive às coisas abstratas. Este era um problema recorrente à época: de onde teria vindo tudo isto que percebemos e racionalizamos, e o que torna esta realidade tão bem ordenada? Ora, que nossa realidade é ordenada já demos por matéria esgotada, conforme já demonstramos em outros artigos.
Não obstante, a afirmação proferida anteriormente já não parece mais tão válida quanto era. Um mínimo de atenção à frase nos faz pensar se ela não possui algo misterioso escondido ali, que se esconde de tão óbvio que é. Ora, não é necessário que fiquemos nervosos perante tão ridícula oração. Ela quer dizer exatamente aquilo que está escrito nela, sem nenhuma ironia, sem nada escondido. Simplesmente aquilo. Confuso?
Debrucemo-nos sobre ela um momento: ora, se a rota para cima e para baixo é uma e a mesma, não importa qual rota eu tome, eu sempre acabarei em algum lugar que não saberei se é “cima” ou “baixo”. Que objeto nos vem à mente quando afirmamos tal coisa? Sim, uma esfera. E qual ação nós tomamos para percorrer a rota para cima e para baixo numa esfera? O movimento. Parece que estamos lidando com pontos de vista aqui, ou seja, com concepções próprias e subjetivas daquilo que seja “cima” ou “baixo”, mas não nos deixemos levar por estes embustes.
Para não nos distrairmos com meras elucubrações histórico-filosóficas, pensemos diretamente no movimento: o que ele é? O pensador grego possui outro aforismo para explicá-lo. De acordo com ele, “nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”, frase que é conhecida no nosso tempo como “não se entra num mesmo rio duas vezes”. Percebemos que há um abismo de diferença entre as duas frases. A simplicidade da segunda retira-lhe seu caráter mais profundo. Portanto, nos detenhamos na análise da primeira para que nenhum ponto permaneça velado.
A definição mais precisa possível do mencionado movimento é aquilo que está evidenciado no aforismo original: ser e não-ser. Ao entrar num rio, as águas antigas passam e novas tomam o seu lugar constantemente, assim como nós, que entramos secos, ficamos molhados. Se isto não basta para ilustrar o movimento, continuemos.
Como é possível ser e não-ser ao mesmo tempo? O eminente pensador efésio afirma que a Verdade se revela no fogo, ao postular que “todas (as coisas) o fogo sobrevindo discernirá e empolgará”. Ora, o que auxiliaria melhor os homens em seu discernimento senão a Verdade? E poderia haver algo que empolgaria mais estes mesmos homens do que a Verdade? Portanto, este fogo do qual fala Heráclito nada mais é do que o maior símbolo da Verdade Absoluta em nosso mundo por seu caráter simples e misterioso. Reflitamos.
É possível segurar ou prender o fogo? Não, não é. Caso tentemos, ele se dissipará. Então, o fogo é algo que está em constante movimento. Mas nem por isso ele deixou de ser fogo. Correto? O que o torna fogo está ali, mesmo que não saibamos o que ele é. O máximo que conseguimos é citar algumas das características do fogo. Deixando esta discussão para um momento mais oportuno, resta-nos claro que o fogo “é” e “não é” ao mesmo tempo, como pretendia Heráclito. Isto não significa que a Verdade possua este mesmo caráter, mas apenas que há um hiato entre aquilo que a coisa que realmente é e aquilo que percebemos dela. A Verdade é, e é isto que Heráclito preceitua tão brilhantemente, ainda que de maneira obscura.
Agora olhemos para nós mesmos. Somos exatamente o que éramos há um minuto? Aparentemente, sim. Porém, é fato que nosso corpo está em constante processo de bombeamento de sangue, troca de calor com o ambiente, e envelhecimento. Da mesma forma que o fogo, perdemos aquilo que nos define como ser? Deixo esta pergunta em suspenso por enquanto.
O que isto tem a ver com a realidade, o caro leitor pode se perguntar. “Qual a finalidade e a utilidade de saber sobre movimento e ser?” A definição objetiva disto vai de encontro à afirmação que motivou este texto. Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Que rota eu estou tomando? É necessário que nos façamos estas perguntas para que compreendamos a realidade em que estamos vivendo. Mesmo que não nos aprofundemos ao responder estas perguntas, é fato que elas definem, mais cedo ou mais tarde, o rumo de nossa vida, ainda que não percebamos.
Existe uma multiplicidade virtualmente infinita de coisas a serem conhecidas em nosso mundo, mas também existe uma unidade que comporta todas estas coisas e faz com que elas possam ser conhecidas, senão não seria possível conhecer nada. Este é o ponto de confusão que muito atordoa os incautos leitores de Heráclito que o tomam por relativista. A proposição do efésio nada mais é do que a existência de uma unidade que contempla toda a multiplicidade do universo, conforme exposto em nosso artigo Sobre a Liberdade e a Ordem.
A forma como nos comportamos perante esta noção pode solucionar grande parte de nossos problemas e suscitar tantos outros. Como devemos agir? Ser ou sendo? Parados ou em movimento? Sentimo-nos como se a rotina, os deveres, as injustiças e todas as adversidades quisessem nos manter num mesmo status para sempre e não temos escapatória disto. E nos vemos repetindo as perguntas do início do parágrafo.
Estas respostas não podem ser dadas por ninguém além de nós mesmos, e mais uma vez, Heráclito vem em nosso auxílio, sugerindo algumas condutas que podem nos tirar do marasmo do cotidiano e nos proporcionar outra perspectiva acerca da realidade imediatamente ao nosso redor, da maneira mais simplista possível, afirmando que devemos procurar a nós mesmos e que não devemos falar e agir como os que dormem. Ora, aqueles que dormem, no sentido de estarem anestesiados pelas ilusões, não podem contribuir para o conhecimento e o esclarecimento humano acerca do mundo, e são “homens que não sabem ouvir nem falar”.
Por fim, Heráclito nos dá o xeque-mate para a boa existência, afirmando que “pensar sensatamente (é) virtude máxima e sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo (a) natureza, escutando.” Estejamos presentes em nossa realidade, procurando sempre a compreensão do todo que ordena o Universo, pois fazemos parte deste e não agir desta maneira é nada além de rejeição de nossa própria natureza.