Colunistas

A democracia que desmerecemos.

Não concordo que o povo está «encantado», «enfeitiçado» pela extrema direita. Não concordo com manipulação de mídias e massas, não concordo nem sequer com o possível efeito de propaganda e ideologização criadas para «enganar» quem quer que seja. O fascismo que buscamos identificar em candidatos e outras pessoas, na verdade está no nosso meio, está dentro das pessoas ao nosso redor. Candidatos, com seu pouco tempo de disseminação de ideias, não são capazes de convencer meio país a se voltar para tendências autoritárias e posturas nada democráticas. Isso vem de dentro de nós. Temos escolhido um processo antidemocrático porque assim somos, assim nos constituímos e assim queremos nosso pequeno universo, que nos reflita como algozes de nós mesmos, porque merecemos nossas dores e chagas, pois nós mesmos nos ferimos quando achamos que as feridas dos mais fortes que nãos não são o suficiente.

Somos ao mesmo tempo vítimas e algozes nesse processo. Vítimas de processo incompleto e irresponsável de instauração de democracia e estado laico, vítimas de educação incapaz de nos clarear o caminho à frente. Nessa educação em que ricos têm acesso mais eficiente à leitura e à escrita, pobres são empurrados a uma escola que busca conter e ensinar uma disciplina básica para o «trabalho». Ano após ano, as escolas derramam ricos e pobres sem condições de tomar decisões próprias, formatados para uma vivência de continuidade de classe. Essa educação deficitária não ensinou nada, o brasileiro é um tipo de indivíduo que não entende a história, porque lhe ensinam a importância do Homem de Cro-Magnon, a bravura e crueldade dos Cruzados, a sagacidade dos portugueses em dominar o mar bravio, a quase inabalável democracia estadunidense. A história do próprio país é negligenciada, apêndice da história do mundo que se tem de aprender a adorar desde cedo, da fonte que produz a cultura que temos prazer (eu sou um deles) em consumir. Somos supostos europeus, queremos pertencer ao mundo deles. Nosso Carnaval é de origem europeu, o samba é originário da mistura de música étnica com europeia, nossas religiões majoritárias são europeias, sentimo-nos como um país no centro da Europa, entre a Suíça, França e Alemanha.

No entanto, somos brasileiros e estamos a milhares de quilômetros de distância, numa terra que eles desprezaram a princípio, depois resolveram explorar. Não no sentido de descobrir, mas no sentido de expropriar, arrancar a riqueza que conseguissem, colonizar do pior modo: dominando, agredindo, matando populações inteiras, fazendo a diáspora africana, compondo uma nação que, mesmo depois de independente, se acha em nível inferior, olha para a Europa com olhos tristes, adorando a amante de Zeus que fora levada a uma ilha para começar uma nova nação, mas que se tornou mais que isso, um continente organizado em torno de uma cultura. Queremos ser um de seus filhos: Minos, Radamanto ou Sarpedão. Mas somos piores. Somos os descendentes de servos, banidos e escravos, trazidos para cá por seus descendentes, milhares e milhares de anos depois. Para nós, Europa olha com o desprezo de quem traz semideuses na barriga. Somos menos do que queremos, aprendemos com os mais finos dos ramos de sua árvore como sermos chamados de civilizados, e o pior de tudo, é que sob a opinião da amada de Zeus, assim como sob o mais independente dos olhares, somos falhos em sermos chamados de civilizados, para o tempo em que vivemos agora.

De colônia de portugueses a nação independente e livre de um rei europeu, ao final do século XIX, nada aqui no Brasil parecia com as repúblicas europeias. O povo, sempre afastado da política, era sistematicamente utilizado como forma de referendá-la. A época dos Coronéis, instituídos como forças judiciárias e policialescas onde a república não chegava. Nesse tempo, o povo não tinha escolha, era povo, era mandado, não havia como ser diferente. No entanto, o aprimoramento das leis e regras, sempre olhando para a trisavó Europa, trouxe incoerentes formas de governar, mas acabaram colocando um pouco do poder nas mãos do povo. Era necessário. Governar não é concentrar, mas espalhar e ajuntar quando necessário. Isso deu poderes a trabalhadores, mulheres, descendentes de escravos. Olhando para a velha senhora do além-mar, reconhecíamos ali o seu rosto que nos deu vida. A face com que a Europa olha o ocidente, Portugal, nossa nação-mãe, que compartilha com todo o continente europeu suas ideias, modismos e contradições. Era necessário que aqui também as tivéssemos. Assim fizemos. Da bruta e ignorante república dos primeiros anos sem rei português, passamos lentamente à ditadura totalitarista, depois à república com sufrágio, depois à ditadura de novo e, por fim o direito de votar e escolher plenamente, em 1990, cento e um anos depois da virada para a liberdade, o liberalismo, o pensamento ilustrado. Como um comprimido que demorou a fazer efeito, precisamos de cem anos de república, nos quais cerca da metade não fomos de fato república para começarmos a ser república.

Pareceu, até certo ponto, tarde demais, em vez de nos deleitarmos na libertê, egalitê e na fraternitê, preferimos subestimar a força dos problemas sociais no seio de nossa pátria mãe gentil, mas também silenciosa, omissa e calada ante a morte de seus filhos mais pobres. Subestimamos também o poder daqueles que nos oprimiam, comemoramos cada vitória sobre eles, nos últimos anos, como se estivéssemos numa disputa de cabo de guerra entre duas turmas de escolares. Não reconhecemos estar numa guerra de classes, mesmo sabendo que os limites das classes saíram se suas bordas originais. Mesmo sabendo que uma crise transforma um rico num pobre, e a oportunidade transforma um pobre num rico. Esquecemo-nos que nas nossas leis, aquelas que lutamos tanto ter como nossa couraça protetora, eram panos de saco sobre nossos corpos servis. Elas se tornaram nossa sentença de condenação, a cada governo incompetente, a cada político corrupto reelegido, elas se viraram contra nós porque permitimos que fosse utilizada ao prazer daqueles que queriam poder sobre nossos corpos e consciências.

Não somos exatamente manipulados, mas somos maleáveis, governáveis, moldáveis, em vez de resilientes. Não fomos claros e lúcidos após o fim da Ditadura Militar. Vimos nossos intelectuais voltarem para casa, nossos rebeldes sem causa aderirem às modas europeias atrasadas vinte anos, contemplamos uma liberdade sem fim: falar, escrever, publicar sem censura: vimos a MTV chegar ao Brasil, a cultura pop nos inundar sem censura, pudemos mostrar seios nus nas televisões em horário nobre. E a que preço? O quanto pagamos por isso? A liberdade era mesmo para todos?

Por maiores e mais gritantes que fossem nossos problemas, crescemos com a ideia de que somos fortes, mas ao mesmo tempo, incompetentes. Assim como pensavam os europeus de há cem anos atrás, achamos que os brasileiros precisam da tutela de um estado que mande, desmande, bata, puna e mate indiscriminadamente. Isso tudo não parece ruim, quando o pior se assoma à frente: o futuro incerto dos descendentes mais fracos e debiloides da Europa. Não pensamos em nos libertar dela, de seu fantasma, antes chamamos o pior de seus demônios expurgados para o sétimo círculo do inferno por lá: convidamos o fascismo para nos cortejar novamente, para encerrarmos mais um ciclo de democracia fajuta e incompetente e trazermos ao lume mais um episódio de barbárie. O Brasil inveja Cuba, inveja China, Venezuela. Não aceita ser republicano e livre. Mas precisa mostra o poder fálico de um homem antiquado e agressor no poder para se marcar.

Mas não nos mostraríamos como nação forte para o mundo. Nosso futuro troglodita seria tão subserviente quanto nossos outros líderes intimidáveis. Na verdade ele tentaria seduzir os maiorais, se mostraria ao mesmo tempo sedento de poder e lascivo, impuro, capaz de se sodomizar para receber uma infinitésima parte do poder daqueles que ele acredita garanti-lo por um, dois mandatos e para um futuro golpe que o perpetuará numa dinastia de homens brancos de olhos famintos por poder. Seríamos novamente a nação que morreria lentamente de uma úlcera interna enquanto nossos líderes se mostrariam lindos e maravilhosos lá fora, como cães tropicais exóticos de luxo de grandes capitalistas e de governos cínicos e contentes com ninguém questionando suas hegemonias.

Mas e se nossos republicanos e democratas se perpetuassem no poder? Eles aguentariam os quatro anos de mandato? A pressão popular por mudanças que eles não estão dispostos a fazer? Eles seriam capazes de se levantar de um, dois, três golpes? Como lidariam com a pressão daqueles que se negaram a votar neles, dispostos a pressionar, com dinheiro para comprar mentiras, para forjar provas, criar situações e no mínimo, levantar o pano de fundo e mostrar como é o backstage em sua forma real? Esses governantes seriam capazes de aguentar tendo o rabo preso de sempre, tendo o povo elegido os deputados de sempre, os senadores de sempre, governando para enriquecer poucos como sempre?

Todas essas perguntas são, ao meu ver, mais importantes. Estamos prestes a perder o status de democracia, sem nunca o ter tido na prática. O que sempre tivemos foi a experiência de um liberalismo selvagem tropical, uma epidemia de consumo e de experiências de existência e coexistência social cimentada numa prática constante de uma ordem capitalista que comanda não somente os corpos, as formas de produção, mas acima de tudo, os desejos e os sujeitos. Tudo o que conseguimos em termos de liberdade e igualdade, até agora é atrelado como carruagens às charretes da ordem socioeconômica vigente. No entanto, não é apenas uma realidade material e histórica que determina isso, mas todo um complexo confuso. Na nossa realidade, as coisas brigam umas contra as outras, como galos de rinha, enquanto os proprietários bebem e apostam alto em quem vai perder ou não.

Não temos clareza e nem lucidez para vermos a vida com os olhos que podem abarcá-la. Temos viseiras, que fizemos questão de as comprar e não queremos largar delas. Vivemos como se não fizesse realmente diferença nenhuma quem assume ou deixa de assumir o poder e estamos com certo cinismo aguardando o próximo ato da tragédia, qualquer que seja o ator principal. Estamos nos preparando para mais um choque de realidade, qualquer que seja, e estamos prontos para o abate. Os barulhentos que querem o poder nesse instante, estão prontos para esquecê-lo, assim que entregue ao chanceler que escolheram. Os crentes na democracia não têm toda a força necessária para sobreviver. Caso evitem a eleição de um fascista, precisariam aguentar e organizar uma resistência virtualmente impossível, já que a democracia tem muitos lados, enquanto o fascismo tem um só.

Jamais aprendemos com nosso passado, dessa vez será igual, perderemos como de sempre, a derrota escolhida tem a exata medida da nossa fraqueza. Optar pela democracia cambiante parece ser o mais correto, é preciso fortalecê-la, enrobustecê-la, torná-la real. Mas apontamos o barco para um pântano onde ele pode vir a encalhar, na verdade é certeza que encalhará num lugar em que ficaremos atolados por um bom tempo. É uma questão de imaginar quanto tempo isso vai tomar de nós. Um mês, um ano, dois… Meditemos sobre o nosso amargo futuro.

 

Alex Mendes

Alex Mendes é professor, graduado em Letras, Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Reside em Goianésia, ensina língua portuguesa e inglesa na rede estadual de Goiás

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