13 de novembro de 2018

ENTRE NÓS E O MUNDO

Dentre os problemas de ordem filosófica que tiram o sono de toda sorte de pensadores e teóricos desde tempos imemoráveis, o problema do dualismo antinômico com certeza recebe destaque e faz ranger dentes onde quer que seja discutido. Falamos aqui obviamente da celeuma existente entre aqueles que defendem que o dualismo encontra-se no ser das coisas, portanto ontológico, e aqueles que defendem que este dualismo é apenas fruto de nossa capacidade de conhecimento, portanto gnosiológico.

Longe de querer adentrar a tão densa problemática, queremos apenas utilizar do esqueleto deste grande arranca-rabo filosófico para ilustrar problemas da ordem de outro campo da Filosofia, mas cuja proposição pode ser bem mais proveitosa ao nobre leitor.

Para tanto, começaremos pelo mesmo lugar de sempre, retirando nossas roupas teóricas para que o leitor saiba exatamente de onde estamos tirando cada uma de nossas afirmações e que não estamos carregando nenhum ás na manga. Fazemos isso porque é o mínimo esperado em uma dialética, ainda que estabelecida de maneira artificial. É triste ter de informar isto através do corpo do texto, mas não temos possibilidade real de transmitir isto ao nobre leitor senão por esta via.

Ora, falávamos antes do dualismo e nos perguntamos se seria proveniente da natureza mesma das coisas ou meramente de nossa percepção. Já chegaremos lá. Este problema já havia sido proposto muito antes de Sócrates (469-399 a.C.) pelo maior membro da Escola de Mileto, Anaximandro (610/9-546 a.C.), sendo posteriormente explorado também por Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.).

A expressão “dualismo” representa, na Filosofia, a segunda característica mais básica de cada ser. A primeira é que cada coisa existente no mundo é exatamente idêntica somente a si mesma, pois se outra lhe fosse idêntica, seriam apenas uma. Este é o princípio da unidade, como definido pelo filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, em sua obra A Filosofia e Seu Inverso (2012), citando Duns Scot:

 

“Todo e qualquer objeto é necessariamente uma unidade. Ens et unum convertuntur, “o ser e a unidade são a mesma coisa”.

 

A segunda característica a qual nos referimos é justamente a dualidade, ou seja, o contraste existente entre um objeto e seu extremo oposto. O problema que afronta a Filosofia é se esta dualidade é intrínseca à coisa ou se apenas um artifício que nossa capacidade cognitiva cria para que possamos compreender o mundo. Isto é atestado pelo fato de que não podemos compreender uma coisa em sua unidade pura, mas não significa que a dualidade esteja na coisa. Percebe o leitor onde pretendemos chegar?

Existe uma espécie de hiato entre nós e o mundo que habitamos e tentamos conhecer, isto é um fato. Alguns diriam que é impossível conhecer as coisas como são, mas já rejeitamos esta possibilidade em outra oportunidade. O problema para o qual queremos chamar a atenção, no entanto, não é este. É o problema da “qualidade” deste hiato. Chamamos assim por falta de melhor termo neste momento, mas não se apegue muito o leitor ao nome, apenas ao que este quer representar: quão boa é a sua relação com o mundo?

Não estamos chamando a atenção do leitor para a sua relação com as pessoas do mundo, ainda, pois embora esta seja parte importante de nossa existência, ela é apenas secundária se comparada a esta primeira. Afasta-te, leitor, destes pensamentos sociais e políticos por um segundo e ouve a voz da metafísica!

O que queremos dizer, então, por “relação com o mundo”? Ora, há aspectos em nossa realidade que muitas vezes preferimos negar ou nem sequer percebemos que estamos negando, seja por uma questão de vergonha diante de um erro ou por sobrevivência psíquica diante de um trauma, o fato é que há coisas em nosso ser das quais preferimos não nos lembrar.

No entanto, perceba o leitor que utilizamos a expressão “nosso ser” para designar o local onde se encontram alguns destes fatos que podemos estar negando ou negligenciando. Tudo o que chega até nós é imediatamente intuído por nossa percepção, mas o que fazemos com o que se nos chega é outra história. De novo, o problema do hiato e do dualismo.

A realidade é uma coisa e nossa percepção dela é outra, e ambas não devem ser misturadas. Pelo contrário, uma das capacidades que adquirimos com o espírito filosófico é a de refinar nossa percepção de modo que esta esteja cada vez mais próxima da realidade. Negando nossas paixões, nossas perspectivas e nossas opiniões em favor de um conhecimento da realidade mesma e não daquela que idealizamos em nosso íntimo, pois não é preciso ressaltar que este último nos trai na maioria das vezes, nos causando intensa dor e sofrimento.

Como muito bem disse Santo Tomás de Aquino em suas Questões Discutidas sobre a Verdade, e não nos cansamos de repetir:

 

verum significat omnino idem quod ens

 

“A verdade é exatamente a mesma coisa que o ente”, ou seja, a verdade é aquilo que a coisa é e não aquilo que pensamos ou achamos ou percebemos ou opinamos e etc.

Diante desta derrocada da existência humana, um filósofo romeno chamado Constantin Noica formulou a hipótese de que este hiato entre a realidade e o homem seria o causador de danos tão profundos que atingiriam o nosso âmago, o nosso ser, o nosso espírito. Sofremos de doenças que não podem ser explicadas pela Medicina nem pela Psicologia, pois são provenientes de algo que não é objeto destas, mas da Filosofia.

A Filosofia se preocupa com o ser e como tal oferece bálsamo para nossas carências e nossas recusas. De acordo com Noica, de maneira grosseira e resumida, encontra-se encerrada em nós a possibilidade de desenvolver três carências e três recusas, cada uma relativa a um aspecto do ser: o universal, o individual e as determinações.

Ora, aquele que carece ou se recusa a perceber a generalidade de certos aspectos da realidade não é capaz de compreender nada do que foi dito acima. Para este enfermo, tudo é baseado na individualidade e suas determinações, só importando o imediato e o material. Não há metafísica e nem ordem, tudo é caos, pois o individual é proveniente da multiplicidade.

No entanto, aquele que carece ou se recusa a perceber a individualidade vive apenas nas nuvens, teorizando acerca de diversos aspectos da vida sem nunca vivê-los, ou seja, carece também de determinações. É incapaz ou se recusa a reconhecer a beleza e a carga de verdade das pequenas coisas do mundo, mesmo vivendo em sua multiplicidade, em favor de uma ilusão de completude.

O último, que recusa ou carece de determinações, é aquele ente completamente passivo, que não se importa nem com a generalidade ou com a individualidade e aguarda pacientemente sua determinação última, a morte, sem nada fazer para evitá-la ou adiantá-la, do tipo falso estoico.

E porque dissemos tudo isso? Ora, justamente para que o leitor se sinta apto a pesquisar mais sobre o assunto, caso o ache pertinente, e responda a si mesmo a questão proposta anteriormente: como está a minha relação com o mundo?

Perguntamos a você, caro leitor: do que você está carecendo na realidade? O que você está recusando da realidade? De quais ilusões você está se enchendo na esperança de estar se aproximando de algo verdadeiro ou bom? Não seriam todas essas suas certezas apenas um monte de desculpas para ignorar a realidade? Não há a mínima possibilidade que você esteja enganado?

Em síntese, a pergunta maior que está sendo feita é: você conhece a si mesmo?