A filosofia como despertar do aprendizado
Durante minha breve passagem pelo universo acadêmico, um dos problemas que mais me chamou a atenção foi o de despertar o aluno. Como interessar alguém por algo que muitos consideram extremamente maçante e desnecessário, como a Filosofia? Deixando de lado o aspecto prático da vida humana, a Filosofia realmente não possui nenhuma utilidade outra que não seja proporcionar diferentes perspectivas acerca da realidade. Realmente inútil, do ponto de vista atual.
Esta mesma preocupação incomodou um dos maiores filósofos que já pisou nesta Terra de Santa Cruz: o grande Mário Ferreira dos Santos (1907 – 1968). O eminente filósofo brasileiro produziu, em sua obra Filosofia e Cosmovisão (2014), uma preleção e introdução à Filosofia que nos servirá de esteio para tentar construir uma ponte entre o ensino de Filosofia e os demais conteúdos.
Então, como ensinar Filosofia? Devemos apenas fazer um resumo da História da Filosofia? Devemos apenas provocar debates aleatórios sobre questões aleatórias que podem não ter nenhuma conexão com a realidade (vide nosso artigo Contra os Acadêmicos)? Ou será que devemos apenas deixar que os alunos tenham as próprias opiniões? Felizmente, nada disso interessa à Filosofia. Então passemos ao estudo sério.
Em nossa compreensão, a primeira etapa em direção à educação formal é a mesma que à Filosofia: o querer saber. Sem este querer saber, não pode haver em nós interesse genuíno numa educação que nos permita transcender as barreiras da mera existência material. A preocupação do filósofo brasileiro com uma base sólida para filosofar pode ser aplicada às demais áreas do conhecimento como preleção para uma investigação detalhada, como propedêutica para um maior entendimento da formação do processo de dúvida e como hermenêutica do caminho que percorre quem se propõe a tal empreendimento.
De maneira esmiuçada, a investigação perpetrada pelo filósofo brasileiro engendra uma série de consequências lógicas, decorrentes do processo inicial de dúvida, que podemos comparar com a infância. Pode soar um tanto clichê, porém o que nos interessa aqui é o detalhamento deste processo e para qual caminho ele aponta.
Em uma crítica à mera empiria como fonte segura de conhecimento, que aparenta ser o problema da contemporaneidade, o autor afirma que nossa inteligência nos proporciona uma melhor compreensão da realidade e sempre nos incita a procurar bases mais sólidas para o conhecimento, ressaltando nossos erros e ilusões, muitas vezes provocados por uma interpretação pobre da realidade.
Esta crítica não é descabida, vista que cada vez mais a educação formal brasileira tem se mostrado materialista, relativista e carente de lógica. O completo desligamento do pensamento racional e teorético, como trataremos mais à frente, preocupa o autor, de maneira que este sintetiza notas que devem ser percorridas para a recuperação deste rigor, desde a educação básica até a pesquisa científica. Rigor este que não é proveniente de algum posicionamento filosófico, mas apenas de consequência lógica da atividade de busca pelo conhecimento e que demonstra nada mais que um apelo a um método que torne o conhecimento científico, ou filosófico, correspondente à realidade que ele pretende investigar e que seja compreensível a quem se propuser aferir os resultados daquele estudo. Não nos parece tão drástico.
Ora, da mesma forma se passa com a educação. Quem é o sujeito da educação, a quem nos referimos quando nos logramos o direito de ensinar? Eis que o professor deve compreender seu lugar na dialética que desempenha com o aluno, para que este último possa desenvolver sua total capacidade em sala de aula, sem que o professor interfira com juízos de gosto, puramente subjetivos e eivados de características que não servem ao aluno, e até de juízos de valor sem correspondência com a realidade. É crucial que o professor tente, ao máximo, então, produzir juízos de fato, transmitindo ao aluno tanto o fato quanto a dúvida acerca daquele fato, mas nunca uma certeza pessoal.
Cabe aqui um adendo para cimentar a semelhança que estamos fazendo entre a filosofia e o ensino. O professor não é cientista enquanto estiver em sala de aula. O máximo que lhe é permitido é ser filósofo (presumindo que o professor tenha um mínimo de contato com o filosofar, não apenas com a Filosofia), pois o filósofo nasce neutro. O cientista explica o fato do seu ponto de vista e o filósofo o questiona. Em sala de aula, portanto, o professor deve apresentar o fato e duvidar dele, suscitando a dúvida e permanecendo neutro. É clichê ressaltar que a ciência não pode ser neutra, mas aparentemente é preciso ressaltar que a filosofia nasce neutra por excelência e é esta a postura que o professor deve conservar em sala de aula. Sem entrar no mérito político do que isso implica, não vemos outra solução para a delimitação do que seja o analista da educação que não implique numa arguição de juízos de fato e não de gosto ou de valor por parte deste, ou seja, do professor.
Destarte, se a pretensão da filosofia é querer saber, percebemos, aqui, outra semelhança da filosofia com a educação. O que quer o aluno senão saber? Por mais que os interesses individuais sejam infinitos e incomensuráveis, em última instância o aluno quer apenas saber. O aluno interroga e o professor esclarece. Mas basta o professor responder aquilo que lhe apeteça? Sabemos que não. O aluno deseja uma resposta que possua correspondência com a realidade, que ele possa aferir por si mesmo, que ele possa esclarecer a dúvida plantada anteriormente pelo juízo de fato que o professor efetuou. Assim, o professor e o aluno dialogam com o saber e o querer saber, respectivamente, e estas funções devem esgotar-se em favor de ambos. O fato, por sua própria natureza, é objetivo. Dessa forma, fica claro o que pretendemos ao dizer que o filósofo, aqui interpretado pelo aluno, carece de uma resposta que responda. Ele carece do fato em si mesmo, ele carece de realidade. Negar essa realidade ao aluno é negar sua individualidade, é negar seu pertencimento a uma sociedade. Pensemos na ágora grega, onde tanto aluno quanto professor eram filósofos, e entenderemos esta noção.
Temos, então, a presença cinco condições para a filosofia, ou para filosofar, sendo que na educação elas permanecem intactas: o aluno; a dúvida que ele possui; a inteligência dele que processa o fato percebido, a vontade de aferir este fato; a verificação efetiva e pessoal deste fato; e a comprovação se o fato corresponde ou não à realidade. Mas, isso encerra toda a atividade da sala de aula? Obviamente, não.
Da insatisfação, percorremos até a satisfação através de novas dúvidas, que só cessariam com esta última. Eis que nos deparamos com o limite: a satisfação. “Alcançar um limite” é a próxima condição do conhecimento, como consequência lógica da anterior, como já havíamos mencionado. Percebemos, diante do que já foi falado, que a educação, assim como a filosofia, não é estanque, mas móvel. Esta é a atividade da filosofia: mover-se em direção a um fim.
O aluno vive no mundo do desconhecido, sua realidade é transpor essas barreiras, é desvendar dificuldades teoréticas. Ele pretende penetrar no mundo através da educação que recebe e é a obrigação gerada pelo ensinar que dá ao aluno o direito de aprender, obrigação com a realidade, obrigação com a objetividade. Mas, qual instrumento o aluno usa para transpor essas barreiras, para iluminar o escuro mundo, para retirar o véu da subjetividade de seus olhos? O pensamento.
A capacidade de reação do aluno é aquilo que o impulsiona à frente. Reagir contra o fato é como magnetos que se atraem até certo ponto e a partir dali se repelem, procedendo à frente, cada vez mais rápido. Já dissemos que o aluno não é mero ente passivo da dialética que desempenha com o professor, porém não exploramos a fundo a noção de que a racionalidade do aluno torna-o capaz de reagir frente aos fatos apresentados pelo professor, que devem aguçar essa capacidade de reação, guiando o aluno sempre em direção a um progresso, um aumento em seu raio de conhecimento.
Ao dizer que o pensamento carece de uma direção, não pretendemos dizer que este deve escolher um caminho baseado na sua subjetividade ou na de qualquer outra pessoa. Destarte, o caminho deve ser escolhido, mas com base nas condições já previamente estabelecidas e com o principiar da investigação da realidade. Por sua individualidade, cada aluno tomará um caminho diferente nessa direção do pensamento, e isso é de uma importância incomensurável para o avanço do conhecimento. Isso implica esperar que cada aluno possua honestidade ao investigar a realidade e que não se deixe enganar por nenhum viés que apenas aparente ser real. Enquanto aluno, ele deve tentar aproximar-se da realidade por quantos caminhos conseguir até encontrar aquele que transponha o limite imposto até aquele momento, não apenas um único caminho. Assim, tendo trilhado os caminhos que foram apresentados, apresenta-se um novo elemento. O que fazer acontece depois da luta contra o obstáculo?
O obstáculo nos tensiona o pensamento, ele faz com que o pensamento se dobre, se curve, se concentre; ele refina o pensamento, de modo que possamos, então, não apenas trilhar o caminho ao qual nos propusemos, mas também fazer nosso próprio caminho para que outros o sigam. Essa é a intenção última do aluno. Tornar-se capaz de trilhar o próprio caminho. A educação deve ser capaz de substanciar-lhe para que alcance este objetivo.
Aparentemente, nada de novo foi dito aqui. Porém, fez-se necessário detalharmos o processo pelo qual o aluno se torna independente para que compreendamos nosso papel como professores. Temos a responsabilidade de guiar o aluno à transposição dos obstáculos e a trilhar seu próprio caminho. Qualquer um que se proponha a tal desafio deve ter em mente que poderá causar enorme benefício na vida do aluno, como também poderá causar enorme deficiência, impedindo o aluno de viver da forma como entender digna. A individualidade do aluno deve ser respeitada enquanto esta não intentar superar a individualidade daqueles ao seu redor.
Concluímos, assim, que árdua tarefa do professor deve ser milimetricamente calculada para que o aluno possa tirar o melhor proveito da atividade escolar, inserido no que já citamos anteriormente. Obviamente este viés não contempla toda a dimensão do universo educacional, mas cremos que deve ser o ponto de partida para uma análise mais profunda sobre os meandros da educação brasileira. Os demais pontos a debater, sejam eles políticos, ideológicos, sociais e afins, devem complementar esta noção mais primitiva e básica para que o ensino se desenvolva rumo aos ideais maiores que guiaram as grandes mentes da história e que guiam até hoje a sociedade. Uma sociedade que visa um ideal é logicamente superior a uma sociedade pessimista que se contenta com a mera existência e com uma visão míope da “condição humana” enquanto mero produto de estímulos externos. Os princípios norteadores de uma sociedade devem permitir que os estudantes sejam ativos, pretensos filósofos e cientistas, para que eles os mantenham e melhorem. O aluno que filosofa, ensina a filosofar, e essa parece ser a única solução para o restabelecimento da educação brasileira.