O Homem Livre
Iniciamos este artigo de maneira bastante simplória, solicitando a nossos mais ávidos leitores o perdão pela prolongada ausência. É impossível relatar aqui as dificuldades implícitas à escrita de um artigo, mas podemos afirmar que elas vão da escolha do tema ao início propriamente dito, que é assaz problemático por vez ou outra. A escolha do tema, em si, já gera bastante turbulência, vista que a inspiração para a escrita de um artigo com requintes de filosofia (e não ousamos fazer mais do que isto aqui) requer que o assunto tratado seja parte da vivência do autor e não menos do que isso, sob o risco de resultar em um texto artificial e superficial. Mas, deve estar se perguntando o nobre leitor, que tem a ver tudo isto com a história? Tudo.
Ora, é necessário, conforme dito anteriormente, que o filósofo vivencie aquilo que investiga, a fim de mergulhar o mais profundamente possível naquele assunto, para que não reste nenhuma dúvida nas assertivas proferidas em eventual demonstração do que foi dito. Mas tanto já foi dito que não tivemos tempo de nos explicar, como é de praxe!
O título que encabeça este artigo nada mais é do que uma singela homenagem ao já exaustivamente mencionado filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, que em vida escreveu um breve periódico de título homônimo ao deste artigo e no qual constam alguns aforismos (talvez excertos) carregados de acidez filosófica da melhor qualidade e cuja capacidade sintética nem sequer ousamos tentar remedar aqui. Coloque isto somado à grandiosidade de suas obras e teremos aqui terreno suficiente para poder desenvolver nossa crítica. Pois bem.
Ao tratar de filosofia, assim como de qualquer outra área, é necessário que o veiculador daquele discurso esteja apto a desenvolver o assunto tratado, pois caso contrário falhará e não logrará êxito, sendo suas ideias rejeitadas e seu discurso ignorado. Aqui se inicia nossa crítica. Acompanhe-nos o nobre leitor.
Ora, como ousamos afirmar que há falha e êxito ao tratar de filosofia? Não é a filosofia justamente a ausência de parâmetro e a dúvida absoluta? Não é o filosofar um duvidar constante sem rumo e sem norte, que culmina apenas na própria dúvida e em nada mais? Poderíamos responder a estas questões com um simples “não”, mas aí estaríamos indo contra o propósito mesmo deste artigo e, na verdade, preferimos realmente magoar aqueles que advogam em favor dos caminhos tomados por aquelas perguntas, afinal de contas, como diz uma frase atribuída ao filósofo cínico Diógenes de Sínope (412-323 a.C.), “de que serve um filósofo senão para magoar os sentimentos alheios?”. Corretamente atribuída ou não, a frase mantém sua veracidade. Mas não divaguemos.
Como é possível aferir quem está apto a falar de filosofia ou não? A resposta satisfatória é longa, mas simples. Durante o período mais fértil da filosofia, o socrático, restou demonstrado nas obras de Platão e Aristóteles que ali havia uma preocupação genuína e profunda com a realidade. Esta era vista como algo a ser desvendado, pois somente ela seria capaz de proferir a verdade daquilo que estava inserido em determinado discurso. Em um tempo onde o discurso era a arma mais poderosa do cidadão, estar em acordo com a realidade era a maior preocupação dos filósofos, vista que os sofistas se encarregavam de outras áreas da investigação, algumas até contrárias ao que está sendo dito aqui.
Ora, o próprio termo “filósofo” demonstra isto. O primeiro a utilizá-lo foi supostamente o pré-socrático Pitágoras de Samos (570-495 a.C.), ou algum de seus discípulos, não se sabe ao certo. Porém, o que se sabe é que, quem quer que tenha cunhado este termo, não o fez sem propósito. Que é o filósofo senão o amante-amigo da sabedoria? Note o nobre leitor a sutileza deste termo: se o filósofo é aquele que ama a sabedoria, isso ocorre justamente porque há uma sabedoria externa ao filósofo, que lhe é objeto de amor. Destarte, se há algo externo a ser amado pelo filósofo, a sabedoria, este não pode estar nele mesmo, devendo estar em um lugar apartado. Este lugar é justamente a realidade, o mundo concreto ou, como diria Santo Tomás de Aquino, os entes da realidade. Tudo aquilo que compõe a realidade é um ente e não há como escapar desta afirmação.
Portanto, percebemos aqui já mais ou menos respondida a questão proposta anteriormente, mas ainda não satisfatoriamente. Se o leitor concorda com aquilo que foi dito, prossigamos.
Mas eis aqui outra pergunta: como pode você, leitor, não ter concordado com o que foi dito nos parágrafos anteriores? Presumindo que você tenha honestidade intelectual, o que é o mínimo a ser esperado numa dialética como a que estabelecemos aqui, você há de ter concordado. Caso contrário, nos acompanhe por mais um instante.
Ora, se sabemos que a realidade existe e é aferível, ou seja, que é possível extrair dela algum conteúdo, forçoso é que estabeleçamos algum critério sob o qual nos seja possível avaliar aquilo que chega até nós através de nossa percepção total (aqui não fazemos distinção entre percepção sensível e as demais). Então, como estabelecer este critério? Os gregos nos respondem: a própria realidade é o critério. Esta afirmação pode soar um tanto confusa aos olhos do nobre leitor, mas está correta. Para explicar, nos valemos da afirmação do filósofo brasileiro no já mencionado periódico: “Na Filosofia só há uma autoridade: a demonstração”.
Ora, como aferir a realidade senão por ela mesma? Se nós apreendemos a realidade através de nossa percepção total e tentamos traduzi-la para nosso idioma, o mínimo a que devemos nos propor é realizar esta tarefa de maneira fidedigna, de modo que nosso discurso demonstre pelo menos verossimilhança com a realidade, caso não seja possível dizê-la como ela é.
É triste ter que esmiuçar e reiterar isto de maneira tão veemente, mas é necessário, vista que o restante do citado aforismo faz crítica justamente ao status ridículo ao qual foi rebaixada a filosofia nos últimos séculos. Fazemos questão de citar este na íntegra, para que não reste dúvida do que estamos a dizer:
“Na Filosofia só há uma autoridade: a demonstração. Basta de filodoxia, de filosofia de meras asserções, invadida espuriamente por estetas malogrados ou duvidosos. Basta de palpiteiros no filosofar. A mente humana já atingiu um grau capaz de demonstrar o que afirma, e de revelar o êrro* palmar em que se fundam os negativistas. As doutrinas negativistas baseam-se* em erros elementares de lógica, por isso combatem a Lógica. Fundam-se em erros elementares de ontologia, por isso combatem a Ontologia e a Metafísica.”,
Ora, quem são os negativistas, estes “palpiteiros do filosofar”? São justamente aqueles que pensam a realidade de um ponto de vista negativo, não apenas no sentido valorativo, mas também no sentido de inversão do processo de compreensão da realidade: pensam que a existência precede a essência. Estes são os “religiosos da existência e da matéria”, como foram nomeados pelo próprio Mário, que se recusa a chamá-los de filósofos justamente porque não o são, estando demonstrada, nas duas últimas frases do aforismo, a razão de não o serem: cometem erros básicos na investigação da realidade. E estes estão justamente em sua incapacidade de demonstração, na realidade mesma, daquilo que está sendo dito. Como é possível levar a sério uma “filosofia de meras asserções” ou uma “filosofia do mais ou menos possível”?
A filosofia existe justamente para questionar os parâmetros que norteiam a investigação da realidade que parte tanto dela quanto das outras ciências, não para removê-los. A dúvida é apenas o ponto inicial, não devendo ser tomada como fim em si. Pensar que se está filosofando ao duvidar é o mesmo que pensar estar caminhando apenas por ter colocado os pés na estrada. Ora, se você não se movimentar, não poderá trilhar o caminho e consequentemente não poderá alcançar nada de concreto, e já demonstramos que há algo de concreto a ser alcançado.
Assim como é necessário dar o primeiro passo para trilhar o caminho da investigação da realidade, é necessário duvidar de tudo aquilo que se nos apresente, mas esta dúvida deve possuir um fim externo: a apreensão e demonstração da realidade. Caso contrário, façamos como Crátilo (séc. V a.C.), discípulo de Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.) e contemporâneo de Platão (428/7-348-7 a.C.), que, por sua incompreensão da doutrina heraclitiana do movimento eterno e ininterrupto, achou por bem permanecer calado por toda sua vida, afirmando não ser possível qualquer conhecimento a respeito do mundo, devido à sua infinita mudança.
Ora, se duvidamos de toda a realidade ao mesmo tempo e pensamos que isto esgota a investigação filosófica, é melhor que nos mantenhamos calados e poupemos o mundo de nossa estupidez. Entretanto, se conseguimos convencer, ao menos por alguns instantes, o nobre leitor de que estamos no caminho certo, nos damos por satisfeitos por percebermos parcialmente cumprida nossa empreitada: mais um homem está livre.