10 de setembro de 2018

Deficiência, desejo e o impossível

O corpo deficiente não cabe nos espaços utópicos que a sociedade sonha para si, coletivamente. Não há espaço para a deficiência nos «paraísos» das religiões europeias ou orientais, nenhum corpo deficiente representa o ideal antropológico das religiões, por mais inclusivas que sejam. O corpo ideal geralmente possui forma, cor e funcionalidade específicas estabelecidas há séculos. Mesmo com a relativização dos rígidos padrões culturais eurocêntricos que experimentamos na atualidade, o corpo deficiente não encontra espaço adequado em nenhuma cultura contemporânea, e sua ausência se nota, inclusive, nas mais radicais contraculturas que existem.

Não há um espaço pacífico para o deficiente. O mundo se organiza em torno de olhos, em primeiro lugar, depois de ouvidos e em função desses dois, de pernas saudáveis para se deslocar. A nossa cultura é grafocêntrica, de dificílimo acesso a quem não vê, quase inacessível a quem não consegue adquirir no tempo correto ao desenvolvimento da abstração e da simbolização necessária para conhecer seus códigos e o movimento dentro das sociedades não é pela democratização de formas de acesso, mas pelo esforço hercúleo em se querer incluir à força o maior número de indivíduos dentro da esfera da letra, da palavra escrita, como se isso fosse o mais democrático, o mais libertário o possível. A cultura europeia ou europeizada retirou da escrita e decodificação o caráter místico, sagrado, solene e até mesmo especializado da atividade do escriba, mas não consegue, ainda, difundir o acesso dos segredos dos sistemas simbólicos a todos. Poucos iniciados com todos os sentidos e com o intelecto funcional têm acesso a isso. Há um mar de semi-ignorantes que não podem, não conseguem, não têm tempo, acesso adequado ou recursos o suficiente para acessar bens culturais como todos. E à margem desses grupos, numa espécie de círculo inferior da ignorância e do esquecimento, está o estrato da população representado pela deficiência intelectual e sensorial, mesmo numa época em que a garantia a esse acesso é lei, é prática corrente em sistemas educacionais, mesmo com o esforço de inclusão dessas pessoas. Quando não há os entraves de acesso e permanência em sistemas de educação, ainda há graves problemas relacionados aos próprios meios pelos quais a cultura produz a si mesma e circula. Indivíduos deficientes vão a escolas, mas há o após a escola, há a ausência de independência, autonomia, o silenciamento, a compreensão dessas pessoas como seres sem vontade, desejo, sem libido, ou ainda como pessoas cuja vontade, desejo e libido precisam ser controladas para não produzirem efeitos indesejados.

É o corpo incoerente, agressivo, agredido, lesionado e lesante, é o corpo que dói, e se há dor, como ser confiável, como se garantir alguma coisa a ele, como esse corpo pode ser dado como garantia? É uma liberdade dolorida e excludente, fora da economia do uso dos corpos e prazeres como bens concretos e simbólicos em sociedade, o corpo deficiente não presta. Não deveria se reproduzir, não é amável, não é amante, não representa e não é representado e quando seus possuidores se destacam na sociedade, não é por que seu espaço seja garantido, mas porque seu indivíduo realizou um esforço hercúleo de o possuir apesar de seus problemas, são aqueles deficientes que mesmo não vendo, ouvindo, compreendendo as coisas ou se locomovendo, sublimam heroicamente suas condições e passam a ser alguém para além de seus corpos.

Na verdade, precisamos ser alguém em nossos corpos, e todo e qualquer corpo, normal ou deficiente, com ou sem acesso a uma grande quantidade de recursos materiais ou culturais, todo corpo merece desejar e ser objeto de desejo. É preciso assumir o desejo por esses corpos, não pelas imagens etéreas de pessoas por detrás deles, corpos só são produtivos se eles podem se constituir como máquinas desejantes ligadas ao corpo social que as movimenta por meio de pesadas engrenagens. O corpo deficiente, o obeso, o corpo anormal, a pele manchada, despigmentada, ou pigmentada demais, o corpo tatuado, perfurado, o corpo que veio de uma cultura em que ele era veículo de outras funções específicas que não a nossa de ser superfície de ação de poderes sociais e econômicos, todos esses corpos merecem espaço.

Na nossa utopia corporal não cabe o igual, o deficiente, principalmente, as exceções não são permitidas. O corpo deve funcionar bem mecanicamente. E essa mecânica absurda do previsível se aplica também ao funcionamento da mente. Não podemos ser diferentes, precisamos ser iguais, padronizados ou mostrar claramente que, apesar de gordos, feios, deficientes, negros, homossexuais e transgêneros, estamos correndo atrás desse corpo ideal, utópico, esse Valhalla inacessível, esse Jardim do Éden que parece ser impossível de esses Campos Elísios do prazer longínquos, mas que muitos já estão perto deles, precisando somente dobrar mais uma esquina.

Precisa-se de espaços diferentes, mistos, possíveis, perturbadores da utopia do corpo. Na verdade, precisa-se retirar os corpos excepcionalmente inferiores da sua distopia cotidiana, e trazê-los para espaços heterotópicos de crise ou compensação onde possam exercer a sua função básica de desejo em locais adequados para si, adaptados, possíveis e participáveis. Precisamos todos de lugares que nos caibam, mas eles, os deficientes, precisam de mais, precisam de espaços em que eles se reconheçam, como objetos e produtores de desejo.

 

Alex Mendes é graduado em Letras pela UEG, mestre em Letras e Linguística pela UFG, professor formador atuante na Gerência de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, Superintendência de Inclusão, da Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Esporte. Seu interesse acadêmico inclui estudos sobre discurso, corpo e poder, em perspectivas históricas críticas em diálogo com a modernidade. Goianesiense, vive atualmente em Goiânia.