12 de novembro de 2017

SER E VIR-A-SER: PHÝSIS

Poucos assuntos despertam tanto a curiosidade humana quanto o que passamos a tratar neste momento. Raros são os que discordarão do caráter misterioso das duas facetas componentes disto que chamamos de existência. Como definir aquilo que somos tomando como ponto de partida tão somente nossa presença física neste mundo sensível? Isto é efetivamente possível? É um desafio que lançamos ao caro leitor, logo de cara, pois não somos capazes de responder a esta questão. Antes de tudo, não somos capazes porque nos parece logicamente impossível que possamos respondê-la da forma como a propusemos. Soa como uma mistura de clichê com um fundo de desconhecido, e talvez seja mais ou menos isto mesmo.

Ora, como podemos partir de nós mesmos em direção ao mundo se não sabemos o que são estas duas partes no todo da realidade? Esta definição parece perdida atualmente, parece propositalmente escondida por agentes que, incapazes de solucionar este e outros problemas de ordem maior, decidiram fechar seus olhos a eles e voltar-se a questões menos imediatas, talvez para não precisarem admitir sua incapacidade perante sua patota.

Por favor, não nos tome o caro leitor por conspiracionistas, mas apenas por preocupados em tentar enxergar todas as razões pelas quais questões tão importantes foram colocadas de lado, por mais esdrúxulas e absurdas que pareçam. Esta é uma das tarefas do filósofo: tentar enxergar onde ninguém mais tenta, inclusive onde todos afirmaram ser inútil tentar. Mas não nos permitamos distanciar de nosso ponto inicial.

Como então responder à questão proposta? Aqui pode nos servir de esteio o método socrático em sua pureza: faz-se necessário questionar todas as possibilidades do problema que nos permita nossa limitada cognição nas já apontadas partes, para que possamos talvez chegar a alguma homologação, no final.

Comecemos devagar, conforme nos ensina o saudoso Mário Ferreira dos Santos, para que não tropecemos em algum obstáculo que nos passe despercebido por imprudência nossa, e pelo que nos aparenta ser mais fácil definir: o mundo sensível. “Que audácia!” poderá argumentar o nobre leitor, mas acompanhe-nos, se possível.

O que é o mundo sensível? Inúmeras tentativas de resposta foram propostas a esta simples pergunta, mas apenas as melhores conseguiram demonstrar isto de maneira efetiva. Concordamos com Platão, ao afirmar que este mundo é mera aparência, passageira e efêmera, em constante deterioração causada pelo eterno devir. De onde parte o devir é tema para outra conversa. Permaneçamos com Platão por mais alguns instantes.

Ora, a existência de um mundo sensível externo a nós parece não ser evidente a alguns de nossos contemporâneos, que argumentam que tudo isto quanto vemos é relativo às nossas percepções pessoais e que, portanto, só existe em nossa mente. Trataremos disto neste primeiro artigo desta série, cujo título informará sempre o assunto a ser tratado. Destarte, nosso tema de investigação aqui hoje será justamente o mundo sensível.

Os gregos possuíam um termo bastante preciso para designar a realidade externa e objetiva: phýsis. Este termo foi traduzido para o latim como natura, de onde se originou a nossa palavra “natureza”, mas esta tradução é um tanto imprecisa, já que o termo original contém em si muito mais do que este pífio significado. Ainda há resquícios atualmente de uma percepção de “natureza” como aquilo relativo à Biologia, ou à Geografia e etc. O termo phýsis diz respeito ao todo universal, externo, objetivo, sensível, que está em constante mutação, sendo esta regulada pelo lógos, como já vimos antes.

Desta forma, phýsis é justamente aquilo do qual fazemos parte, pois estamos no universo, mas que é externo à nossa existência pessoal. Não estamos aqui falando da diferença entre “sujeito” e “objeto”, mas apenas atestando o fato de que apesar de estarmos em unidade com o universo, estamos também em multiplicidade com as coisas existentes nele. Apenas isto. Pode soar um tanto heraclitiano, e a intenção é justamente esta: a multiplicidade das coisas do universo está contida no todo que é um, conforme preceitua o efésio em sua incompreendida sentença “não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um” (sic).

Portanto, se tudo aquilo que está no universo é um ente e a cada um destes entes corresponde um ser, como podemos ser o mesmo que qualquer outra coisa que exista em concomitância conosco? Isto não seria um tanto absurdo? Ora, nosso caráter ôntico não é mesmo que o de mais nada neste universo, muito menos é o nosso ser.

Neste momento, poderá o leitor estar argumentando como Descartes, afirmando que tudo o quanto consta neste suposto universo externo que postulamos em verdade e, com efeito, só existe em nossa mente. Demos toda esta volta para contextualizar o que diremos a seguir: não, o mundo não existe só em nossa mente. Caso as conjecturas anteriores não bastem para demonstrar isto, acompanhe-nos o nobre leitor num raciocínio diferente, então. Caso esteja satisfeito, acompanhe-nos pela diversão.

Entre os que afirmam que o mundo só existe em nossa mente e que tudo aquilo quanto percebemos existe apenas para nós, podemos nos limitar a duas possibilidades: o mundo como sonho e o mundo como imaginação. Em última instância, estas duas possibilidades são bem semelhantes, mas analisemo-nas em separado primeiramente.

Caso a realidade seja um sonho, existindo apenas em nossa mente, este sonho poderá ter duas naturezas distintas: temporal e atemporal.

A natureza temporal do sonho implica que ele começou em algum momento no tempo, mesmo que fuja do tempo para o infinito. Para que o sonho tenha começado em algum momento no tempo, ele depende de uma localização daquele que sonha no espaço. Se há uma localização daquele que sonha no espaço, há uma realidade externa a nós da qual o sonho retira sua fonte de conteúdo. Primeira hipótese descartada.

A natureza atemporal do sonho implica que ele está fora do tempo e que é eterno, pois senão cairíamos na hipótese anterior. Portanto, um sonho eterno implica que o sonhador esteja em sono eterno e que nunca tenha despertado para uma possível realidade externa a ele. Desta forma, o sonhador é o criador do mundo de seu sonho e provavelmente ele terá formas próprias para os entes de sua realidade. Mas pensemos em termos de que esta nossa realidade é um sonho. Ora, se esta realidade é um sonho, nós todos compartilhamos da mesma condição de existência: a mente do criador. Só existimos nela. Se só existimos nela, nós todos somos o criador. Se nós todos somos o criador, a multiplicidade da nossa existência é ilusória e todos os entes que a compõem são na verdade nós mesmos. Um sonho é isto: você é tudo no sonho, todos os entes dele, mesmo que não perceba isto, pelo caráter “embriagante” deste, já que nos sonhos as imagens nos são turvas e difusas. Não confunda o caro leitor esta unidade da mente do criador com a unidade do todo universal proposta por Heráclito. Na mente do criador não haveria necessidade de investigação, pois já saberíamos tudo de antemão. Ora, se somos tudo, qual a necessidade de investigarmos aquilo que nos cerca? Pode argumentar o leitor que o criador poderia confundir sua criatura de propósito, para que ela pensasse justamente assim, mas isto não seria confundir a si próprio? Ora, se eu e minha criatura somos um, como posso realizar tal ação? Percebe o leitor essa discrepância? Não haveria necessidade de linguagem nem de nada, pois não haveria sobre o quê falar, já que estaria tudo contido em nós. Se tudo estivesse contido em nós, seríamos capazes de dizer as coisas como elas são, ou seja, de dizer o ser das coisas. Porém, percebemos que nossa linguagem ainda não nos permite fazer isto, apesar de sermos capazes de intuir este ser das coisas, conforme exposto aqui. Com isto, dou a segunda hipótese também por descartada.

Ao mesmo tempo em que falamos da hipótese do sonho, podemos falar da hipótese da imaginação: basta retirar-lhe o caráter “embriagante” mencionado anteriormente. Se formos capazes de criar mentalmente algo inteiramente novo, que não esteja em nenhuma medida relacionada com nada do que existe em nosso universo, então necessariamente teremos que ser capazes de dizer seu ser. Neste momento, o caro leitor deve estar pensando em alguma forma geométrica totalmente nova, ou em algum animal com corpo composto de luz ou som, ou em objetos feitos de gases nobres, não percebendo que tudo isto são apenas concatenações de ideias provenientes de coisas que já existem em nosso universo e das quais não conseguimos expressar senão as aparências.

Em conclusão, é necessário que exista um mundo externo a nós o qual investigamos e tentamos compreender, pelo que restou demonstrado acima. Qualquer hipótese que não tenhamos contemplado aqui, nós pedimos ao nobre leitor que nos avise para que possamos proceder à sua investigação, mas cremos não restar dúvida. Isto feito, ou seja, demonstrada a necessidade mesma da existência de uma realidade externa a nós, nossa posterior investigação se dará justamente naquilo que compõe a phýsis em alguns aspectos específicos, pois não podemos obviamente contemplá-la toda em nossa investigação, pelas limitações tão injustamente impostas a nós seres humanos.