Colunistas

Norma culta e violência simbólica

 

Nos meus últimos escritos, eu deixei claro que o estabelecimento de uma linguagem normatizada é uma espécie de violência simbólica. Mas o que é violência simbólica? Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu, é um tipo de violência exercida sem coação física, sem agressão direta ao corpo, mas que provoca danos morais, psicológicos, uma vez que se apoia na imposição de ideias, na superposição de crenças umas sobre as outras, na atuação institucional sobre a vida em sociedade.

A violência simbólica acontece toda vez em que alguém ou alguma instituição impõe sobre um ou mais indivíduos verdades que querem apagar as anteriores. Por exemplo. A imposição religiosa que pode acontecer em escolas, por exemplo. Muitos estudantes são expostos a doutrinas cristãs quando professores os obrigam a rezar o Pai-Nosso. Isso é violência quando é imposto, pois não abre a possibilidade para que os estudantes possam questionar. Não acreditar em deuses, por exemplo, não é exatamente, um problema moral, uma vez que a moral laica, em tese, atende melhor aos princípios de ajustamento social e convivência pacífica do que exatamente a moral religiosa, que é mais impositiva. Mas a maioria das pessoas acha isso natural e apenas a minoria não cristã que se incomoda. Mas a religião é apenas um dos problemas. Há outras tantas formas de imposição e violência simbólica na escola, uma delas é claramente a forma de se ensinar a língua.

Toda escola deveria ser um templo do saber, mas na verdade, a maioria delas se torna uma espécie de fábrica de sujeitos que atua na manutenção da desigualdade social de modo horizontal e vertical. É um jogo delicado de violências simbólicas múltiplas e entrelaçadas. A escola pública, por exemplo, combina uma série de fatores de imposição ideológica violenta sobre os estudantes, como ensinar coisas sem relevância para os estudantes, para que sua formação não o prepare para competir por trabalho de maneira justa no futuro, ao mesmo tempo em que ensina mal aquilo que tem relevância. Agindo dessa forma, o ensino público, mesmo quando apresenta índice de qualidade superior, mesmo quando a comunidade se rebela contra esse sistema de imposições, mesmo quando tenta fazer diferença, esse ensino colabora com a manutenção social.

De maneira horizontal, a escola pública é uma das grandes responsáveis pela manutenção da classe baixa no seu lugar na sociedade. O fracasso escolar, há algum tempo, era a principal forma de manutenção social. Hoje isso é somente um coadjuvante num processo mais delicado que inclui a aprovação automática, o fracasso das escolas em manter a qualidade do ensino por múltiplos fatores, a violência no ambiente escolar, a má formação dos professores, a falta de infraestrutura, por exemplo. Verticalmente, a escola pública dificulta o término do Ensino Médio, forma mal para o Exame Nacional que dá acesso ao Ensino Superior, além de oferecer uma formação que não combina com a inserção no mercado de trabalho, mesmo nas propostas mais atuais que prometem exatamente isso.

Voltando a falar sobre língua portuguesa, é nesse ambiente que há a violência simbólica, imposta no modo com se ensina a língua, desde as séries iniciais. A desculpa de se ensinar as primeiras letras a crianças de até seis anos de idade vêm com a imposição de formas entendidas como “corretas”. Essa forma é opressiva e tem sido apontada como o principal empecilho à evolução da linguagem. Coisas desnecessárias da língua, como gênero de seres sem sexo, plural excessivo, conjugações verbais obsoletas continuam a existir porque a norma as impõe. A norma complica uma coisa fácil, intuitiva: a comunicação por meio da língua. Seu conhecimento não é só considerado como forma de acesso a níveis maiores de estudo e trabalho, mas como indicativo de cidadania e prestígio. A violência simbólica da norma culta existe não quando a mesma norma existe, mas quando é imposta e valorizada em excesso, quando sua aprendizagem, ainda que inútil, é imposta e cobrada, quando determinadas formas de respeito em sociedade dependem do seu uso, mesmo quando isso é desnecessário ou absurdo, até.

A violência simbólica existe quando se corrige o português das pessoas em momentos em que o uso da norma é facultado. Mas uma das maiores violências é ainda o ensino deficitário da língua portuguesa nas escolas. A abordagem prescritiva do ensino da língua, a imposição de uma gramática normativa a despeito de uma gramática do uso, a fetichização de regras e normas prescritas dificultam o entendimento da norma como variante útil. Na verdade, a pouca aplicabilidade prática da norma culta nos espaços de convivência social das classes mais pobres nota um desdém das instituições pela disseminação da norma entre todos. De fato, o acesso à norma culta confere poder aos mais simples, não somente isso, mas também a habilidade de saber ler, interpretar e se comunicar no mesmo código linguístico utilizado pelos mais ricos. A norma culta leva ao aprendizado da fala mais destacada, da voz modulada, do comedimento e economia nas palavras, o que demonstra sofisticação. Por sua vez, o modo fluido, intuitivo, sincopado e de alto volume, características específicas da fala de muitas pessoas mais pobres, evidencia pouca escolaridade, ou mesmo, a escolaridade que não dá acesso à língua como ferramenta, como poder ou como forma de acesso ao que classes maiores falam, escrevem ou leem.

Se a norma culta, sua existência e seu ensino nas escolas públicas constituem uma forma de violência simbólica, o ideal seria aboli-la, então? Pode até ser uma boa saída, mas não resolve o problema. A melhor forma de se resolver o problema é se democratizar o acesso à leitura, à escrita, ao ensino das regras da norma culta, para que todos possam usá-la e aplicá-la na língua, para que ela possa ser uma opção. Não para que os mais simples e pobres deixem de usar sua coloquialidade, mas para que eles possam ter acesso à língua de maneira igualitária. O ensino de língua portuguesa precisa ser guiado por duas vertentes, a primeira delas é a valorização democrática de suas variantes, em segundo lugar, o acesso democrático à língua, para que a norma culta, enquanto for uma forma de poder e prestígio sociais, possa ser acessada por todos quando assim desejarem ou quando precisarem em determinados momentos da vivência social. O certo, então seria que mais pobres pudessem falar como eles querem, como eles aprenderam, mas que fossem capazes de escrever uma correspondência que não fosse um registro da fala com expressões, vocábulos e estrutura que fizesse que outros os corrigissem e os diminuíssem por isso. O certo é que estudantes do Ensino Médio fossem aprovados sabendo um mínimo da norma culta para entender o que seja um substantivo, um verbo ou um adjetivo, para falar nas classes mais fáceis. Ou que pudessem identificar um sujeito em uma oração, algo que permite o entendimento de outras coisas no ensino formal da língua. Ensinar o estudante a ler e escrever na variedade padrão da língua, na forma culta, sem desvalorizar sua fala, sua escrita particular, suas formas de expressão como cidadão é uma tarefa possível e não violenta.

 

Alex Mendes

Alex Mendes é professor, graduado em Letras, Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Reside em Goianésia, ensina língua portuguesa e inglesa na rede estadual de Goiás

Deixe um comentário

× Fale Conosco