19 de novembro de 2018

Da sinceridade

Dando continuidade ao que foi dito no último artigo, passamos agora a tratar com um pouco mais de profundidade acerca das questões levantadas. O questionamento a respeito de quem somos revela muito mais do que problemas existenciais, alcançando um nível de abstração intransponível e levando-nos a considerar os elementos ontológicos de nossa realidade.

Ora, a pergunta “quem é você?” quer uma resposta muito mais satisfatória do que meramente o seu nome. Esta pergunta encerra um enigma que foi capaz de provocar ódio para com nosso tão conhecido e mencionado Sócrates, que ridicularizou o grande sofista Górgias ao direcioná-la a ele. Ou pelo menos quase.

Para expressar ao leitor a profundidade que esta pergunta encerra, é necessário recorrermos ao seu original grego, pois muito se perde nestas traduções contemporâneas feitas sem a devida preocupação com a minúcia com a qual foram escritas as obras gregas. Para bem executar esta tarefa, portanto, nos valeremos do auxílio de um dos maiores filósofos do século passado, o alemão Eric Voegelin (1901-1985), que analisa esta questão no terceiro volume de sua obra Ordem e História.

De acordo com Voegelin, quando interpelado por seu amigo Cérefon acerca do que Sócrates desejaria perguntar ao famoso Górgias, este dispara única e categoricamente a expressão óstin estín, que possui dupla tradução. Eis o problema. O eminente filósofo alemão compreende que “óstin” pode ser traduzido por “quem” ou “o que”, para que não se confunda com a ironia de Sócrates ao responder a Cérefon o que ele queria dizer com isto. A expressão, portanto, pode significar tanto “quem é ele” quanto “o que é ele”.

A pergunta permanece a mesma, mas diferentes traduções alcançam níveis diferentes. Se permanecermos na superfície e simplesmente respondermos à pergunta “o que é ele” conforme ironizado por Sócrates, que afirmou a Cérefon que desejaria saber algo como a profissão de Górgias, não alcançaremos o verdadeiro propósito do método socrático.

É necessário, portanto, conforme orienta Voegelin, compreender o caráter verdadeiramente desafiador da pergunta: o que somos nós? Não quer esta pergunta uma resposta vaga como “sou professor” ou “sou fulano”, mas sim o que é a nossa substância. A acidez de Voegelin é justificada, dessa forma, ao afirmar que “esta é, para todos os tempos, a questão decisiva, cortando a rede de opiniões, ideias sociais e ideologias. É a questão que apela à nobreza da alma, e é a única questão que o intelectual ignóbil não pode encarar […]”.

Ora, eis aí o resumo do que queríamos dizer no texto anterior. Com as perguntas realizadas lá, queríamos apelar à nobreza da alma do leitor, intentávamos que o leitor compreendesse o quão honesto é consigo mesmo. Não é necessário que o leitor seja sincero conosco se não o for consigo mesmo. Isso não nos interessa. O que interessa é saber se estamos dando conta de quem realmente somos e não de nossos papéis sociais e ideologias.

Outro exemplo extremamente contundente é trazido pelo próprio Sócrates acerca da sinceridade necessária para o verdadeiro conhecimento de si. No diálogo platônico Fedro, enquanto caminham ao plátano onde leria a Sócrates um discurso proferido por Lísias acerca do amor, este pergunta se Sócrates acredita em crenças populares, tais como a lenda do sequestro de Orituia por Boreias, ao passo que aquele lhe devolve a afirmação de que não dispõe de tempo para verificar cientificamente a validade das crenças populares pois está muito ocupado tentando o tempo todo cumprir o mandamento da inscrição de Delfos: conhece-te a ti mesmo.

É imprescindível compreender que Sócrates afirma categoricamente que as outras coisas são irrelevantes se comparadas à magnitude deste problema. Tudo o mais se dissolve ao nos darmos conta de que nem sequer sabemos quem somos. Se o leitor duvida, pense em todas as mentiras que já contou e conta a si mesmo para poder enfrentar determinados problemas cotidianos e terá sua resposta. Às vezes é difícil até mesmo ter esta percepção, pois estamos tão acostumados a ignorar a realidade e a mentir para nós mesmos que nem sequer temos a capacidade de diferenciar mais o que é a verdadeira honestidade de nosso íntimo.

Não cremos ser necessário lembrar ao leitor dos males que advêm deste hiato existente entre nós e o mundo. A libertação de nossas ideologias e ilusões será proveniente somente desta sinceridade absoluta, da forma como incitamos o leitor a fazer quando procedemos a apresentar nossos argumentos e fundamentação antes de nossos textos. Despimo-nos de nossas roupas retóricas para que o leitor confirme empiricamente que não carregamos nenhuma artimanha e sugerimos que seja feita esta mesma coisa em todos os aspectos de sua vida.

Tudo o que dissemos até o momento possui apenas um foco, provocar o leitor em direção àquilo que Aristóteles considerou como o thelos da existência humana, sua finalidade: a felicidade plena, a eudaimonia.

Ora, para que mais estaríamos nesta vida senão para alcançar um estado onde não haveria alegrias nem tristezas, mas apenas felicidade absoluta? Alegrias e tristezas são passageiras, somente a verdadeira felicidade é capaz de proporcionar ao homem a completude que tanto desejamos. O vazio que sentimos em determinados momentos de nossa vida não pode ser devidamente preenchido por alegrias ou tristezas, mas apenas pela felicidade e esta advém de uma única capacidade humana: a virtude.

No entanto, se basta-nos a virtude para que sejamos felizes, é necessário trilhar um caminho árduo para alcançá-la, que envolve um aprendizado contínuo acerca da vida em si. Assim, resta a questão: como seremos felizes se nem sequer sabemos quem somos?

Para tanto, insistimos: quem é você?